O Outro Lado do Paraíso e a violência contra mulher
O Outro Lado do Paraíso é a novela nova, escrita por Walcyr Carrasco, e exibida às 21h, o horário nobre da Globo. A história se passa no Jalapão, localizado no Tocantins, e conta a história da protagonista Clara, interpretada pela atriz Bianca Bin. A jovem é uma professora que dá aula num quilombo da região e nunca teve uma presença materna. Foi criada pelo pai e pelo avô, Josafá — personagem de Lima Duarte.
Logo no começo da trama, Clara conhece Gael, interpretado por Sérgio Guizé. Ambos se apaixonam e casam mesmo não se conhecendo há muito tempo. Gael aparece na vida de Clara como o príncipe num cavalo branco. Aliás, numa moto.
O relacionamento acontece de maneira fervorosa, há um encantamento, um amor de conto de fadas; Clara se refere a ele como “meu príncipe gentil”. Para a personagem de Bianca Bin, uma moça humilde e do interior, há uma forte idealização do amor romântico. Ela se vê abaixo de Gael, o rapaz rico e da cidade que por um “milagre da vida” se apaixonou por ela. Nós sabemos que príncipes encantados não existem, e que essa discrepância de realidades das quais os dois vieram vai culminar numa relação desigual de poder muito cruel.
O Outro Lado do Paraíso tem se mostrado uma obra ambiciosa por abordar em um horário considerado “família” temas fortes como machismo, racismo, homofobia, nanismo, assédio moral, abuso sexual, pedofilia e prostituição.
Tratar assuntos como esses não é novidade para Walcyr Carrasco que foi o autor de Verdades Secretas. Mas em O Outro Lado do Paraíso, Walcyr tem como foco a violência contra mulher. Diferente de outras novelas que já trataram do assunto, desta vez a violência doméstica é o tema da protagonista, não é mais uma personagem mulher coadjuvante que apanha do marido mau (como vivida por tantas atrizes, desde Helena Ranaldi em Mulheres Apaixonadas — aquela mesma, da raquete, que na época a situação acabou virando uma espécie de piada nacional, lamentável! — até Paolla Oliveira em O Profeta, Lília Cabral em A Favorita, Dira Paes em Fina Estampa e outras).
O expectador não consegue fugir da trama da personagem principal, ou seja, estamos sempre vendo as agressões sofridas por Clara, sempre sentindo o medo que ela tem da próxima agressão. A violência contra mulher não é uma ou duas cenas curtas que vemos por capítulo, e depois esquecemos, não é mais o que acontece na casa da vizinha ou alguém distante, é algo que acontece sempre, que acontece com você.
Outro ponto importante é a quebra do estereotipo do agressor, Gael não é o homem mau, sádico ou viciado que bate na mulher por causa de suas frustrações — completamente diferente dos agressores das novelas ali em cima: em Mulheres Apaixonadas o personagem de Dan Stulbach era um louco completo; em O Profeta, Dalton Vigh era um vilão clássico, e não se espera coisas boas e corretas de vilões; a Favorita e Fina Estampa seguem a linha dos agressores viciados e frustrados.
Percebem a diferença? É muito relevante que o nosso imaginário sobre os agressores não seja resumido a um monstro, um homem naturalmente mau e que só de olharmos para ele já o reconhecemos, porque na vida real não é assim. Gael é novo, bonito, rico, as vezes engraçado, vive momentos ótimos com a Clara — eles não estão sempre em guerra — e ele até chora, pede desculpas, arrepende-se, diz que ama e que não vai fazer mais. Ele é um homem real, machista e muito real.
No segundo episódio da novela, a cena em que Clara é estuprada pelo marido na noite de núpcias gerou uma enxurrada de críticas negativas nas redes sociais pedindo temas “mais leves”, pois se vive coisas difícies diariamente. Mas também levantou a questão de que esses tipos de caso acontecem entre marido e mulher, e por isso deve ser debatido e combatido.
Mais uma vez entramos na questão do imaginário sobre o agressor de mulheres, o estuprador é visto como um desconhecido que na calada da noite se esconde e ataca as mulheres sozinhas na rua, sendo que nós sabemos que a maioria dos casos de estupro no Brasil acontece “dentro de casa”, sendo o agressor um conhecido da vítima.
E a violência sexual cometida pelos companheiros é um tema muito negligenciado, porque se acredita que as mulheres devem “cumprir com seus deveres conjugais”, denunciar esses casos são complicados, as mulheres tendem a preferir se preservar desses constrangimentos e como Clara, às vezes acreditam que não vai voltar a acontecer e nem entendem que foram vítimas de um estupro.
O ciclo dos abusos também aparece na relação de Clara e Gael. Eles estão bem, Gael tem uma crise, que pode ser provocada por várias razões: ciúmes, “desobediência” de Clara, etc., eles brigam, Clara é agredida, pensa na separação e na denúncia, ele pede desculpas, jura arrependimento, não vai acontecer de novo. Clara perdoa, eles ficam bem e começa tudo de novo. Muito comum em relacionamentos violentos e abusivos reais.
É extremamente significativo que este assunto seja abordado numa novela no Brasil; apesar de cada vez mais as mulheres terem acesso a pautas e discussões feministas e de repensar seu papel na sociedade, esses assuntos ainda ficam restritos a quem pode participar dos debates, ou seja, mulheres com certo poder aquisitivo, que tem acesso amplo a internet, que tem acesso à educação. Não podemos subestimar o poder da televisão no sentido de alcançar mulheres que não conseguem participar destes ambientes, que de certa forma são elitizados.
Nos capítulos em Clara é agredida, no final do episódio, antes dos créditos, aparece este banner, deixando claro que a violência contra mulher é crime e deve ser denunciada; também há o link para a página de responsabilidade social da emissora, em que podem ser encontrados alguns vídeos e textos falando sobre o Outro Lado do Paraíso e relacionamentos abusivos e violentos — o conteúdo, na nossa opinião, está fraco, mas é sempre válido ouvir relatos de mulheres que passaram por situações de violência.
Ainda falando das cenas de violência, e que cenas! São momentos muito fortes, que causam um grande desconforto. As cenas são intercaladas de flashes paralelos de Clara se afogando ou tentando fugir, reforçando poeticamente a sensação de uma mulher quando está sendo agredida: de querer fugir, de impotência, de medo, de tudo que sufoca e faz mal.
O Outro Lado do Paraíso está longe de ser a novela perfeita ou um símbolo da luta feminista no combate a violência contra mulher, há outras questões a serem pontuadas, há nuances que totalmente discordamos, como o fato de quase todas as mulheres da trama sempre estarem sonhando com o amor de um homem, desde a Leandra, a “prostituta que só quer ser amada” até Estela e Lívia, e esquecerem (completamente) das outras várias facetas do universo feminino, como educação, trabalho, lazer, viagens, etc.
Mas apesar desses contextos, vale a pena valorizar o grande espaço que foi dado para uma questão tão importante e problemática, e reconhecer a relevância da quebra de estereótipos sobre esse tipo de violência. Resta-nos esperar que abordagem de Walcyr sirva para aumentar o debate e o combate a violência domestica no Brasil, e que a Clara, assim como outras tantas mulheres, possa conseguir sair desse relacionamento, e seus agressores sejam punidos.
Vamos deixar aqui em baixo esse hino!!!!, que faz parte da trilha sonora da novela, e merece ser um mantra para todas as mulheres. A música se chama Triste, Louca ou Má, escrita e cantada por Juliana Strassacapa, da banda Francisco, el hombre. O clipe é lindão. E então, o que vocês estão achando de o Outro Lado do Paraíso e sua abordagem sobre violência doméstica? Bora bater um papo? Deixa aí nos comentários ;)
Acolha as mulheres vítimas de violência, não se cale, não nos cale. Ligue 180 e denuncie.
Por Juliana Theodoro e Erica Marques
A Erica escreve no Obvious, dá uma olhadinha aqui.