LITERATURA

A antologia “Antes que Eu me Esqueça” e a eternização da memória de escritoras lésbicas e bissexuais

Proposta e temática da obra, a memória conecta as criações literárias de cinquenta autoras contemporâneas no livro publicado em junho de 2021

Valentina Bressan
Published in
3 min readAug 26, 2021

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O fundo da imagem é azul. À esquerda, está escrito: “antes que eu me esqueça”. Na direita da imagem, há o desenho de uma pessoa, com traços finos, ela tem os braços ao alto e a cabeça jogada para trás. Há outra mão, com unhas pintadas, e mais à esquerda, há duas mãos entrelaçadas. Os tons usados são azuis, verdes e rosas, e há pequenos detalhes como círculos.
Capa do livro: arte de Júlia Bertú.

“Antes que Eu me Esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje” é um livro sobre a memória. Lançada em junho deste ano, a antologia nasceu a partir de uma ideia da organizadora Gabriela Soutello: durante dois anos, ela buscou e divulgou em seu instagram relatos de escritoras que, assim como ela, se relacionavam com mulheres. Segundo Soutello, seu propósito era reunir e preservar as referências que ela gostaria de ter tido ao longo da vida.

Com o convite da editora, a busca foi ampliada e foram selecionadas cinquenta produções, enviadas por autoras contemporâneas de todas as regiões do Brasil. Integram também a antologia as escritoras convidadas Monique Malcher, Natália Borges Polesso, Paloma Franca Amorim e Tatiana Nascimento. Entre verso e prosa, as narrativas de Antes que Eu me Esqueça não só dão a oportunidade de conhecer ou reencontrar autoras que têm uma gigantesca potência criativa mas também fascinam e suscitam reflexões sobre o tempo, as relações e como estes constroem quem somos.

A temática da memória costura os textos, que se distanciam e se conectam, cada qual com seu tom e as marcas particulares das escritoras. Percorremos a infância e a adolescência, passando pelas descobertas das narradoras sobre a vida e sobre si próprias, embaladas por discos da Cássia Eller ou CDs do Evanescence. Vemos os entrelaçamentos nas histórias das famílias, com o resgate da ancestralidade das avós, com as mães e filhas unidas por contos sobre o parir, o nascer e o morrer. Acompanhamos, também, estas personagens que fazem perguntas, exploram as ruas, as cidades, investigam seus corpos e afetos e criam novas possibilidades de existência.

Daqui de dentro ainda posso sentir nossos corpos muito próximos dentro do metrô, indo na direção contrária de casa. Ainda mantenho o corpo vivo e viva a sede de esbarrar no teu em alguma esquina. De juntas darmos nós nas linhas retas que tentam sufocar a paisagem dessa cidade que somos. (8 fragmentos do corpo-cidade, de Marina Monteiro)

A diversidade, tanto de escritoras quanto de textos, reafirma que esta não é uma obra sobre um bloco homogêneo de pessoas, mas sobre a possibilidade de reunir produções destas vozes da literatura contemporânea que trazem consigo suas subjetividades. “Uma junção de corpos dissidentes, e tão diferentes entre si” é como a organizadora Gabriela Soutello define o livro em sua introdução. Este é, sim, um livro escrito por lésbicas, bissexuais, sapatãos, pansexuais, tybyra e queer. Não é, contudo, um livro centrado em dissertar sobre a sexualidade em si, pelo contrário, seu objetivo era dar espaço para a livre escrita destas autoras.

A importância do destaque para estas produção torna-se ainda mais fundamental em tempos de intensificação da discriminação àqueles que fogem das normas de gênero e sexualidade. Neste contexto, por exemplo, foi lançado este ano o financiamento coletivo do Arquivo Lésbico Brasileiro, com o propósito de registrar e preservar a história e cultura da comunidade. No Dia da Visibilidade Lésbica, 29 de agosto, o projeto também irá iniciar o primeiro censo de lésbicas e sapatões do Brasil.

A literatura, afinal, é também uma maneira central de se preservar a memória individual e coletiva e, neste sentido, a antologia cumpre brilhantemente seu objetivo mencionado pela organizadora de honrar aquelas que conservaram estas lembranças e registrar as autoras do hoje. Ao construir estas referências, Antes que Eu me Esqueça dá concretude ao tema da memória e mantém vivas, “eternizadas futuras”, estas histórias.

eu ouço o murmúrio do tempo

compondo acordes de amor & memória

[somos quem recorda e quem

carrega as marcas adiante

[somos quem ama com culpa

e sem imagem, até pouco antes

[somos cartografia que se autoexplora

e extrapola os ditames

[somos o rio e a beira,

a curva da história, passada adiante.]

(ruídos em curva, de Keyty Medeiros)

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