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“A Sociedade da Neve” e a psique de um sobrevivente

Filme sobre o “Milagre dos Andes” estreou na Netflix em janeiro de 2024

Laura C. Bender
Published in
4 min readApr 1, 2024

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Cena de “A Sociedade da Neve” I Reprodução: Canaltech

Minha voz se ouve nas palavras deles. Conta como todos fomos fundamentais. Esta é a nossa história.

— Trecho da narração de Numa Turcatti no filme “A Sociedade da Neve”

Baseado no livro homônimo escrito pelo jornalista uruguaio Pablo Vierci , o filme “A Sociedade de Neve”, dirigido por Juan Antonio Bayona, conta a história do desastre do avião 571 da Força Aérea Uruguaia. O voo, que partiu de Montevidéu rumo a Santiago, no Chile, caiu na Cordilheira dos Andes em 13 de outubro 1972. Dos 45 passageiros, que eram os pilotos, um time de rugby e seus acompanhantes, apenas 16 sobreviveram após passarem 72 dias perdidos na montanha. O feito ficou conhecido como “Milagre dos Andes”.

É importante destacar desde já que o filme não é uma história sobre heroísmo, mas uma construção assombrosamente real do que os sobreviventes do desastre passaram enquanto estiveram nos Andes. “A Sociedade da Neve” não demora para introduzir os personagens, mostrando como eram seus cotidianos normais antes de inseri-los em um cenário desesperador, em que os que não morreram na própria queda do avião precisaram aprender a ficar vivos em um ambiente inóspito.

Quem narra essa história é Numa Turcatti, uma das vítimas do desastre. Através das palavras de Numa, uma forte camada psicológica é adicionada a narrativa ao descrever como todos foram afetados pela passagem dos dias, a fome, o frio, o isolamento e a constante luta pela vida em um âmbito que transcende o aspecto físico. Não vemos apenas seus corpos emagrecendo na tela ou seus lábios rachados pela temperatura extrema, sentimos seu estômago encolhido e seu interior gelado. Enquanto assistimos o filme, também estamos nos Andes, sobrevivendo naquela montanha que se tornou uma casa e um cemitério.

Como se já não fosse suficientemente denso, a obra também entra em uma discussão que até hoje é debatida quando se cita o “Milagre dos Andes”: o canibalismo. Famintos, mas sem comida, o grupo não teve outra alternativa senão a de se alimentar dos corpos que sobraram do acidente. O espectador entra nesse dilema moral e acompanha quando os personagens, independentemente de suas crenças, cedem à necessidade e deixam de tratar o ato com horror para o aceitarem com uma insensibilidade visceral. Não há para onde fugir. Esse fantasma os assombra desde os primeiros até os últimos dos 72 dias.

Cena de “A Sociedade da Neve” I Reprodução: CNN Brasil

No entanto, mesmo com essa realidade mórbida presente, a obra ainda se destaca pelo cuidado com que aborda as mortes das 29 pessoas ao mencionar seu nome e idade ao longo da narrativa. É uma forma sutil, mas impactante, de prestar respeito aos falecidos e que dialoga perfeitamente com a direção de Bayona. A estratégia de mostrar os nomes e idades de cada vítima reforça a máxima de que cada indivíduo que esteve no voo 571 foi fundamental, tanto física quanto espiritualmente, para os eventos que se sucederam na montanha.

Os responsáveis por dar a vida a essas pessoas trabalharam magistralmente. “A Sociedade da Neve”, mesmo ao lidar com uma ampla gama de personagens, não peca em nenhum participante de seu elenco. Entre os destaques estão o ator uruguaio Enzo Vogrincic, que interpreta Numa com uma sensibilidade e força impressionantes. Além dele, os atores Matías Recalt, responsável por interpretar Roberto Canessa, e Agustín Pardella, que interpreta Nando Parrado, também merecem aplausos de pé. Foram Roberto e Nando que desbravaram a montanha e encontraram a civilização, avisando-a de que estavam vivos.

Então, fica claro que não foi a toa que “A Sociedade da Neve” recebeu a indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional e também ao Oscar de Melhor Maquiagem e Penteados em 2024. A fotografia, o elenco, a trilha sonora e a direção se juntam para criar uma obra que é uma reflexão do trauma que abalou o mundo inteiro, especialmente os 16 uruguaios que sempre irão carregar o peso da vida na Cordilheira em seus ombros. É uma perspectiva triste, mas real. É o retrato fiel de como se tornou a psique de um sobrevivente antes, durante e depois do “Milagre dos Andes”.

Cena de “A Sociedade da Neve” I Reprodução: A Gazeta

O que aconteceu na montanha? Perguntam os jornalistas com suas câmeras e microfones. Perguntam os médicos com seus exames e instrumentos. O que eles veem? Assustam-se com as roupas sujas. Com os corpos esqueléticos queimados pelo sol. Com as crostas na pele. Os jornais falam dos heróis dos Andes, os que voltaram da morte para se encontrar com seus pais, suas mães, suas namoradas e seus filhos. Mas eles não se sentem heróis, porque estiveram mortos como nós e só eles conseguiram retornar. E, ao se lembrarem de nós, se perguntam: “por que não voltamos juntos?”, “que sentido tem?”. Só vocês podem atribuir um sentido. Vocês são a resposta. Continuem cuidando uns dos outros e contem a todos o que fizemos na montanha.

— Trecho da narração de Numa Turcatti no filme “A Sociedade da Neve”.

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