Literatura

“As mulheres são capazes de tudo”: as bruxas da noite e a história pouco contada

As mulheres que não aparecem nos livros de história, mas que ajudaram a escrevê-los

Ana Julia Zanotto
Caderno 2
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7 min readMay 27, 2021

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As bruxas da noite. Reprodução: midianinja.

Muito pouco se ouve falar dessas mulheres. Quem foram as bruxas da noite? Por quais motivos carregam este nome um tanto quanto sobrenatural? Por que são dificilmente lembradas?

Essas perguntas e muitas outras foram investigadas pela jornalista e escritora italiana Ritanna Armeni, que desbravou nas 248 páginas de seu livro, “As Bruxas da Noite: a história não contada do regimento aéreo feminino russo durante a Segunda Guerra Mundial”, os mais de 23 mil voos realizados pelas aviadoras do 588º Regimento de Bombardeio Aéreo Noturno Soviético durante 1.100 noites de combate. As Nachthexen (bruxas da noite), como eram chamadas pelos soldados alemães da Wehrmacht, bombardeavam à noite as tropas nazistas, de quem os comandantes tentaram, de início, esconder a verdade: quem os aterrorizavam todas as noites, de maneira ininterrupta, eram mulheres.

Em sua obra, Ritanna entrevista, após muita procura e esforço, Irina Rakobolskaya, matemática e física de 96 anos, vice-comandante do regimento 588, chefe da equipe e a última bruxa viva. A partir de longas conversas e muitas tardes passadas no apartamento da velha senhora de memória impecável, a jornalista imerge na história contada por Irina, que, por meio de livros, fotografias, mapas e documentos, reconstrói os detalhes de uma guerra difícil, uma luta contra os inimigos da pátria e contra o machismo.

Irina Rakobolskaya. Reprodução: The Daily Telegraph.

Logo de início, Irina já deixa claro para Ritanna e para todos os leitores que o regimento 588 era composto somente por mulheres, sem homens, nem um sequer. O regimento era chefiado por mulheres, as pilotas de bombardeio eram mulheres, assim como as mecânicas e as encarregadas dos armamentos.

“Escreveram que também havia homens no nosso regimento. Não é verdade, éramos todas mulheres e assim permanecemos até o final. Não deem ouvidos a quem diz o contrário.”

A partir das conversas com a velha bruxa, Ritanna constrói uma linha do tempo, iniciada com o rompimento do pacto de não agressão entre a União Soviética e a Alemanha. Irina descreve o momento exato em que sua vida simples de estudante universitária, prestes a concluir o curso de física, vira de cabeça para baixo. Através de um discurso imprevisto do então ministro das Relações Exteriores, Molotov, Irina e a população de Moscou tomam conhecimento do ataque realizado pelas tropas alemãs em junho de 1941. Ofensiva, esta, que quebrava o pacto e dava início a uma série de conflitos entre o Exército Vermelho e as tropas nazistas.

Logo no início dos conflitos, os estudantes que se colocaram à disposição da pátria foram enviados para colher grãos no lugar dos camponeses que partiam para a linha de frente. Também cavaram trincheiras, fossos e galerias para a proteção da cidade. Um mês após os primeiros ataques, os jovens receberam atualizações sobre os avanços do exército inimigo: os alemães ocupavam mais territórios soviéticos e ampliavam sua esfera de ação. Com o avanço do tempo e das tropas nazistas, Moscou organizou a resistência, e os estudantes passaram a ser treinados para o uso de armas e frequentaram cursos de enfermagem — o que não foi de grande estranhamento, já que homens e mulheres, desde cedo, eram habituados à ideia de enfrentar uma guerra, frequentavam cursos de artilharia, paraquedismo e voo, aprendiam a carregar fuzis e a cuidar de feridas. Passados três meses dos conflitos iniciais, perguntas sobre a utilidade dos estudos em momentos de guerra pairavam sobre as mentes dos estudantes, que, após conclusões, aglomeravam-se em centros de alistamento dispondo-se para ir às linhas de frente.

Mulheres não eram enviadas à linha de frente, o que indignava Irina e as outras estudantes. Elas queriam ir à guerra, estavam preparadas para isso, mas eram mandadas embora dos centros de alistamento e não recebiam respostas às cartas enviadas. Até que, após exímio esforço, Marina Raskova, a primeira aviadora russa e um grande símbolo para as jovens soviéticas, convence Stalin a criar regimentos de bombardeamento aéreo exclusivamente femininos. Marina foi uma lenda, uma inspiração para as jovens aviadoras, e, diante de qualquer dúvida expressa pelos líderes russos sobre a capacidade das mulheres em pilotar aviões, ela mantinha intacto o seu mantra: “uma mulher é capaz de tudo”.

Marina Raskova. Reprodução: Museum Of Women Pilots.

Com a possibilidade de alistamento, muitas mulheres — mães, estudantes, cientistas — optaram pelos campos de batalha. Após criteriosa seleção, as jovens, dentre elas Irina, ingressaram na Força Aérea, em um grupo liderado por Marina Raskova.

“Em 1941, comunicar para um grupo de garotas russas que estão para encontrar Marina Raskova é como anunciar a um grupo de adolescentes americanas que falarão com sua diva preferida de Hollywood ou, nos anos 1960, dizer a um grupo de jovens europeias que sairão para jantar com John Lennon.”

Em certa conversa que teve com Yevgueniya Rudneva, estudante de astronomia, Irina conta que ao anunciar a decisão de interromper os estudos e alistar-se, a amiga afirmou com convicção: “se a pátria não for livre, nem mesmo a ciência poderá sê-lo”.

As bruxas da noite. Foto: Divulgação/UOL.

As moças de Raskova estavam orgulhosas, alegres e prontas para enfrentar o que viesse, mas a melancolia era um sentimento compartilhado entre elas. Muitas haviam deixado famílias para trás, filhos, mães, pais, maridos, e a pergunta que todas tinham presa em suas mentes, “será que voltaremos?”, não aliviava a angústia daquele momento.

Contudo, a apreensão que elas levavam consigo não era o único empecilho. Os primeiros uniformes que lhes foram destinados eram enormes, adequados para homens com pelo menos 1,80 m, as menores botas eram número 43 e as calças arrastavam no chão — graças às agulhas e linhas levadas nas mochilas, as jovens conseguiram adaptar as vestimentas e deixá-las adequadas. Os aviões pilotados pelas bruxas eram de um modelo antigo, o Polikarpov, um bimotor simples, projetado no final dos anos 1920 para pulverizar produtos químicos em áreas agrícolas, com dois lugares — um para a pilota e outro para a navegadora — e sem proteção para frio, chuva e neve. A Força Aérea Russa possuía modelos mais sofisticados, capazes de atingir maior altura e velocidade, mas a elas foram destinados aviões simples, rurais e frágeis. Ainda assim, elas não desistiram. Estudaram e treinaram sem trégua, 14/15 horas por dia, com chuva ou sol, e fizeram dos aviões comuns e desatualizados o temor noturno das tropas nazistas.

O caminho percorrido até alcançarem reconhecimento não foi fácil. As aviadoras de Raskova foram alvo de dúvida, chacota e desprezo. Eram nomeadas como o “regimento das tolinhas” e, antes de entrarem efetivamente em combate, os dirigentes pensavam em usá-las o mínimo possível.

“Depois descobrimos que os alemães nos chamavam de bruxas da noite, Nachthexen! Termo que também pode ser traduzido como “magas da noite”. Mas eu gosto, nós gostávamos de dizer bruxas e pensar que nos definiam assim porque não conseguiam nos derrubar”

No decorrer da obra, diversos pontos são retratados pela escritora: a vida pessoal de Irina, a forte amizade construída entre as aviadoras, as dificuldades de permanecer longe da família e a perda das companheiras durante a guerra. Ainda que fossem pilotas habilidosas e ágeis, várias não retornavam de seus voos. No pequeno Polikarpov não havia espaço para paraquedas e, quando a artilharia antiaérea inimiga conseguia alcançá-las, o avião transformava-se em uma grande bola de fogo, finalizando sua trajetória no solo, com pilota e navegadora reduzidas a corpos queimados e irreconhecíveis.

Ao final da guerra, as temidas aviadoras russas receberam certo reconhecimento pelo heroísmo demonstrado. Medalhas preenchiam seus uniformes, e o título de Regimento da Guarda lhes fora concedido. Contudo, isso não durou muito tempo. Pouco depois do fim da guerra, a elas foi passada a mensagem de que “os papéis deveriam ser restaurados e reconstruídos”, de maneira que as mulheres foram obrigadas a deixar de lado a vida no exército para que se ocupassem com o papel de mães e contribuíssem para a força de trabalho. A maioria delas não ficou satisfeita com essa decisão, mas não havia opção, teriam de encontrar o sentido de suas vidas em novas atividades.

Em sua visita ao Museu do Exército Vermelho, Ritanna aponta a grande dificuldade que teve para encontrar o espaço destinado às bruxas. A elas foram dedicadas uma vitrine e duas bandeiras, nas quais não há escritos ou quaisquer indícios de que o regimento 588 tenha sido exclusivamente feminino.

Anualmente, após o término da guerra, as bruxas encontravam-se no dia 2 de maio no jardim do Bolshoi. Por anos a fio, elas mantiveram seu ritual, relembrando memórias de guerra junto com suas amigas e familiares. Porém, nem mesmo as bruxas da noite, que enfrentaram batalhas e encararam inimigos brutais, foram capazes de vencer a morte. Ano após ano o grupo diminuiu, até restar somente uma última bruxa, Irina Rakobolskaya, que faleceu pouco antes de completar 97 anos.

Em sua obra, Ritanna Armeni consegue fazer uma transição sutil entre passado e futuro. Une com destreza as histórias de guerra dos anos 1940 com os momentos de conversa no apartamento de Irina, nos quais somos surpreendidos constantemente pela memória admirável da senhora de 96 anos e pela brava luta das aviadoras russas, “as bruxas da noite”.

Capa do livro. Reprodução: Editora Seoman.

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Ana Julia Zanotto
Caderno 2

Estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária do Núcleo de Conservação e Memória do Patrimônio Cultural do Palácio Piratini