Crítica

Blonde: a Ana estava armada, mas o roteiro a matou

Em uma era que cada vez mais enaltece as mulheres, o filme, protagonizado por Ana de Armas, vai na extrema contramão do esperado — e até do aceitável.

João Luciano Souza
Published in
4 min readOct 3, 2022

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Blonde é o nome do aguardado longa que conta a vida de Marilyn Monroe. Produzido pela Netflix, o filme é escrito e dirigido por Andrew Dominik, e foi lançado no Brasil na última quarta-feira, 28 de setembro.

Marilyn, o ícone da cultura pop — nascida Norma Jean — , é interpretada por Ana de Armas neste filme baseado em um livro de mesmo nome. Os principais pontos que chamam atenção são, primeiramente, a duração do filme; são quase 3 horas de longa, o que não é por si só um problema, o filme conta com um ritmo bom, a forma como é editado e os pequenos cortes que ligam as cenas tornam tudo muito interessante e dão um prazer de assistir. Outro ponto positivo é a fotografia, é usado um quadro quadrado, que não domina a tela inteira, característico do cinema antigo. O modo como a história é costurada com a recriação das cenas e fotografias clássicas da atriz, intercaladas com momentos da vida, juntamente com os recursos de edição — usados para passar determinados pontos da história sem serem ditos — é realmente artístico.

Em uma era em que cada vez mais os longas enaltecem as mulheres e as colocam como protagonistas de suas histórias, o filme de Andrew Dominik vai na extrema contramão do esperado e até do aceitável. Marilyn é retratada como uma mulher conturbada e infantil, que é colocada — com passividade — para fazer filmes por ser um objeto sexual atraente.

Reprodução: Netflix

A primeira parte retrata a infância da atriz, a doença psiquiátrica de sua mãe até a internação em um manicômio, que é quando Norma Jean vai para um orfanato. Talvez seja a parte mais emocionante do filme, pois até aí tudo funciona, mas “daí pra frente é só pra trás”. Já na fase adulta, uma das primeiras cenas retrata o modo (segundo o diretor) que a atriz pode ter conseguido seu primeiro papel: por meio de “favores” sexuais. É isso que Marilyn é durante o filme inteiro, um pedaço de carne; ela não é colocada sequer como uma atriz talentosa. Fato bem representado pela cena em que Norma Jean faz o teste para um filme e a única consideração do diretor é: “que traseiro lindo ela tem”. Com certeza a atriz era sexualizada e abusada por homens a todo o momento, mas seria este o único motivo dela ser contratada? E, se sim, seria suficiente para a persona desta mulher ser reverenciada mais de 60 anos após sua morte?

Quanto à presença de Ana de Armas no filme, esta se destaca no papel da loira mais famosa do cinema. A caracterização, a voz, a fragilidade, tudo está de acordo, faz o espectador crer e gostar da personagem. O grande problema está no roteiro. A protagonista é retratada como agente passiva da própria vida, o que talvez não fosse um problema se esta fosse a Marilyn da vida real, mas este não é o caso. A diva se divorciou três vezes, ousou ser um símbolo sexual e até brigou judicialmente com a Fox para abrir a própria produtora de filmes, podendo escolher os papéis que interpretaria — tudo isso entre os anos 50 e 60. Toda essa ação da personagem é apagada e colocada como reação aos acontecimentos. Em Blonde ela só busca por papéis mais sérios quando é agredida pelo marido e não têm nenhuma outra reação além de aceitar as condições que ele impõe. O mesmo acontece na cena em que Marilyn busca por um aborto, mas pede incessantemente para voltar atrás e não é ouvida. A personagem é imponente, ela só sofre, o filme é menos sobre a história da Marilyn Monroe e mais sobre como ela se sente sozinha, triste e confusa — e, claro, mostrá-la em cenas sexuais.

Então, chegamos ao clímax desnecessário da história, que chega a ser triste e completamente desconfortável de assistir. Em um encontro com o ex-presidente, John Kennedy, a cena de Marilyn sendo forçada a fazer sexo oral, explicitamente, é posta em tela. Um grande resumo do machismo com que a história é retratada pelo homem que dirigiu este filme. Marilyn Monroe foi uma mulher que sofreu e foi objetificada, mas também a mulher que sozinha construiu a própria carreira, ditou o padrão de beleza e continua como um dos ícones mais famosos da cultura popular.

Sendo assim, fica o questionamento: seria este o enfoque que o filme sobre uma das mulheres mais famosas da história da humanidade teria se fosse dirigido por uma mulher?

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