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Entrevista com o Vampiro: Companheiros em sangue

A primeira temporada de “Entrevista com o Vampiro” é original, provocadora e imperdível

Clara Costamilan
Caderno 2
Published in
5 min readJul 3, 2024

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Reprodução: AMC / Prime Video

Na Nova Orleans de 1910, a vizinhança da Rue Royale convive com uma família incomum. Louis de Point du Lac (Jacob Anderson), Lestat de Lioncourt (Sam Reid), e Claudia (Bailey Bass) formam um trio envolvente ao tentarem sobreviver à imortalidade e à mundana convivência. Na Dubai de 2022, o vampiro Louis compartilha novamente sua história com o jornalista Daniel Molloy (Eric Bogosian), 40 anos após uma desastrosa primeira tentativa. Agora, sem deixar de lado quaisquer detalhes — sejam eles doces ou muito amargos.

“Entrevista com o Vampiro” é a mais recente adaptação cinematográfica do romance gótico de Anne Rice de 1976, leitura cânone para os interessados no gênero de vampiros, horror e fantasia. Produzido pela AMC com o showrunner Rolin Jones em 2022, a série chegou apenas em maio no Brasil. A primeira temporada está disponível no streaming Prime Video.

Nesta versão, a adaptação retira as teias de aranha do texto e o proporciona muito mais profundidade ao transpor a ambientação da Nova Orleans colonial para o início do século XX, e ao mudar a apresentação do personagem Louis de um soturno mas bonzinho dono de escravos (isso mesmo), para um privilegiado homem negro e homossexual com os mesmos dilemas morais e muitas nuances.

Se no filme de 1994, com Brad Pitt e Tom Cruise, o protagonista Louis de Point du Lac é um vampiro melancólico, marcado pela nostalgia e arrependimentos de sua vida mortal e imortal, na série, ele é tudo isso, mas muito mais. Interpretado com maestria por Jacob Anderson, o protagonista da trama é agora também carismático e amável — mas sem deixar de nos presentear com momentos monstruosos. Longe da interpretação de pouca variedade e muito chororô de Pitt, Anderson coloca força na personalidade de Louis e em sua história.

Louis de Point du Lac. | Reprodução: AMC/ Prime Video

A narrativa é do vampiro, mas guiada pelo jornalista Daniel Molloy. Os dois, então, embarcam juntos na tentativa de não só contar a história da vida de Louis, como também encontrar os significados pessoais nas suas memórias (e desmemórias).

Culpa Católica

O vampirismo aqui pode ser interpretado de diversas maneiras, mas o texto nos dá muitas pistas. A culpa que Louis sente de sua natureza vampírica anda de mãos dadas com a sua relação com a religião — a famosa culpa católica. Louis reprime sua personalidade e valores por trás de uma máscara de homem viril, o homem da casa, que lhe foi emprestada por uma sociedade racista e sexista. Dono de bordeis no distrito de luz vermelha de Nova Orleans, Louis mantém o estilo de vida confortável da família, também marcada pelo catolicismo e os tais bons costumes.

Os dilemas bem x mal, certo x errado, virtude x pecado permeiam a vida mortal do personagem, ressentido com as injustiças à sua volta e a sua própria cumplicidade no sistema em que vive. Com a chegada do hipnotizante vampiro Lestat de Lioncourt, Louis é igualmente encantado e perturbado pela sua atração. Desafiando todas as suas concepções, a paixão pelo hedonista Lestat e uma tragédia pessoal resultam numa receita perfeita para um romance conturbado e arrebatador.

Lestat é referido pela família de Louis como a personificação do diabo. Provocador, ele trará a dúvida para as crenças pessoais de Louis. Ao questionar as dificuldades da vida à sua volta, o vampiro o rodeia em uma caça sedutora. Em pânico, Louis procura a igreja da cidade para se confessar: “Eu me deitei com um homem… Eu deitei com o Diabo. E ele criou raízes em mim, todas as suas finas raízes em mim, e eu não consigo pensar em mais nada além de sua voz e suas palavras.”

Então, a tentação. Lestat oferece uma resposta às angústias de Louis. Deus não existe, nós existimos e eu posso amar você como Deus não amou.

Louis e Lestat na igreja. | Reprodução: AMC/ Prime Video

O sangue, a mordida e a transformação são carregados de teor sexual, texto e subtexto romântico. O vampirismo é o pecado — na cena acima, o pecado da sexualidade e a união homossexual. Lestat transforma Louis no altar da igreja, e até o padre está presente (após seu brutal assassinato). Lestat, coberto de sangue, faz votos de compreensão e amor a Louis, e diz: “Seja meu companheiro, Louis. Seja todas as coisas bonitas que você é, e seja sem desculpas. Por toda a eternidade”.

A Casa na Rue Royale

Ao tornarem-se companheiros numa peculiar vida após a morte, seu relacionamento se desenvolverá de forma intensa e incluirá a presença de Claudia, a jovem vampira que integra o trio como filha, irmã e rival. Com performances arrebatadoras de Sam Reid e Bailey Bass, Lestat e Claudia têm uma relação complexa e com um quê de Rapunzel e Mãe Gothel. Sua mãe sabe mais, e sabe mais que você. Lestat ensina Claudia o que é ser vampiro, iniciando-a num gosto mórbido pela morte e pela manipulação. Nem todos os conhecimentos sobre sua natureza sobrenatural são compartilhados, deixando abertas oportunidades para o ressentimento e terríveis consequências. Lestat e Claudia são parecidos no seu orgulho e no seu amor por Louis, que desaprova as crueldades e imoralidades do seu cotidiano e seus companheiros.

Claudia | Reprodução: AMC/Prime Video

O texto é carregado com a prosa pesada de Anne Rice, mas consegue passar por momentos românticos, grotescos e cômicos de modo fluído e instigante. A música original e a cenografia impecáveis colocam a última pá de terra no caixão do melodrama vampiresco. Com puxadas de tapete muito bem construídas e pistas que indicam o futuro desenvolvimento da trama, a primeira temporada de “Entrevista com o Vampiro” é original e tenebrosamente empolgante.

A segunda temporada chega ao Prime Video no dia 22 de julho.

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