Cinema

Nada de Novo no Front: é possível que um filme seja antiguerra?

Ambientado na Primeira Guerra Mundial, a obra expõe as contradições da guerra e revive antiga discussão.

João Vítor Debiasi
Published in
7 min readJan 31, 2023

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Nada de Novo no Front I Reprodução: Netflix/IMDB

No final de 2022 foi lançado na Netflix o filme alemão “Nada de Novo no Front”, terceira adaptação do livro de Erich Maria Remarque (1928). O longa, dirigido por Edward Berger, além de receber indicações para nove categorias do Oscar — incluindo a de melhor filme -, sendo um dos grandes destaques para a premiação, reviveu velhos questionamentos que permeiam a comunidade cinematográfica: é possível um filme ser antiguerra? Se sim, o que o faz ser? “Nada de Novo no Front” é um deles?

Os filmes de guerra são objeto de complexos debates no mundo do cinema desde que começaram a ser produzidos. Em uma entrevista para o Chicago Tribune, o renomado cineasta François Truffaut disse que não existem filmes antiguerra, pois “todo filme sobre guerra acaba sendo pró-guerra”. Para Truffaut, não importa se o filme retratar a violência da forma mais realista possível, como o espectador sempre estará assistindo de uma distância segura e confortável, protegido por uma tela, tudo acaba se tornando parte de um espetáculo, se transformando em entretenimento.

O grande diretor Steven Spielberg certa vez disse, em contraponto a Truffaut, que “todo filme de guerra, bom ou ruim, é um filme antiguerra”. Entretanto, sua própria obra “O Resgate do Soldado Ryan” representa uma contradição a essa tese. Mesmo retratando a violência de forma gráfica, o longa cai nas convenções narrativas de Hollywood, com um herói que se sacrifica para completar a missão de salvar um soldado, que vive para formar uma família e honrar seus companheiros mortos. O filme acaba fomentando a ideia de que mesmo com a brutalidade, as guerras valem a pena. Além disso, acaba por promover o “mito do herói” (ou “cultura do herói”), essa representação da morte e do sacrifício como algo sagrado e uma forma de obter respeito e admiração de outras pessoas e da sociedade como um todo. É difícil nomear um filme que tenha promovido tanto a imagem de nobreza e honra às guerras militares norte-americanas e à guerra, no geral.

Portanto, apesar de mostrar a dura realidade do combate, os filmes ainda podem romantizar em vez de criticar se não questionarem as funções gerais de uma guerra. Agnieszka Monnet, professora e pesquisadora da Universidade de Lausanne, em seu ensaio “Is There Such a Thing as an Antiwar Film?”, argumenta que para um filme ser realmente antiguerra, precisaria além de questionar sua moralidade, representá-la como algo não gratificante e sem nexo, assim como imprestável e degenerativa a psique dos soldados e da sociedade. O grande problema é que as narrativas cinematográficas tendem a cativar ao invés de desiludir, e a promover mitos ao invés de desconstruí-los.

Obras que conseguem mostrar a brutalidade grotesca de uma guerra, mas que também abordam uma narrativa mais subjetiva e psicológica, costumam ter mais sucesso em sua mensagem antiguerra. “Vá e Veja” (1985) é considerado um dos maiores filmes antiguerra do cinema. O longa soviético segue a perspectiva de uma jovem, que, ao ter sua aldeia massacrada por tropas nazistas, acaba vagando pela guerra sozinha. Além de retratar a violência, o longa de Elem Klimov, aborda de forma profunda os danos psicológicos causados por esses conflitos. Filmes mais recentes, como Dunkirk (2017) e Sniper Americano (2014), são centro de debate sobre qual é a verdadeira mensagem que acabam passando. O filme de Christopher Nolan tenta mostrar como a guerra não é algo excitante, e que, além de estressante, pode ser totalmente monótona. Porém ao fazer isso, constrói em seu longa uma imagem limpa — portanto, irreal — da guerra. Já Sniper Americano ao mesmo tempo que tenta criticar a cultura do herói e os efeitos disso, acaba, no fim, caindo nela ao apresentar o protagonista como uma espécie de herói nacional. O fato é que se a mensagem fica ambígua para a maioria dos telespectadores, significa que a obra falhou em transmitir o que queria.

Uma das conclusões de Monnet é que os filmes de guerra só podem ser tão antiguerra quanto seus espectadores — o que não deixa de ser uma verdade, já que os criadores de uma obra não tem controle sobre as reações e interpretações de sua audiência. Algo que pode medir de forma mais simplória a mensagem que o filme acaba passando é se ele teve influência no número de alistamentos militares. “Top Gun” (1986), que não esconde ser uma propaganda “hollywoodiana” da marinha estadunidense, ajudou a aumentar o número de recrutamentos para as Forças Armadas do país. Segundo a US Navy, a taxa de recrutamento cresceu 500% no ano seguinte ao lançamento do filme. Contudo, isso também é observado até mesmo em filmes que teoricamente tentariam ser antiguerra, como em “Nascido para Matar” (1987), de Stanley Kubrick. O finado ator e militar Ronald Lee Ermey, que interpreta um oficial no filme de Kubrick, afirma que o longa foi um dos “filmes mais influentes de todos os tempos no que diz respeito ao recrutamento”. Esses dados são uma pequena forma de demonstrar o impacto e a força cultural que o cinema tem na sociedade, justificando ainda mais a importância da discussão que existe em torno dos filmes de guerra.

Na sequência de abertura de “Nada de Novo no Front”, começamos acompanhando um soldado que vê seus companheiros morrendo em sua frente e, em seguida, somos expostos a garotos mortos empilhados e sendo despidos de seus uniformes — incluindo o soldado que tínhamos acabado de seguir. Os uniformes são lavados e remendados, ficando prontos para que novos recrutas possam morrer vestindo-os. Logo no início, o filme apronta-se para mostrar que morrer em combate é algo sem propósito, quebrando a concepção de um sacrifico heroico.

Nada de Novo no Front I Reprodução: Netflix/IMDB

Conhecemos então Paul Bäumer (Felix Kammerer), o jovem que acompanhamos de perto até o final da história. Ao mostrar o dia do recrutamento e a pressão que os garotos sofriam para se alistarem, o longa efetivamente critica a noção de que o exército e a guerra são um rito de passagem válido para se tornar um verdadeiro homem. Assim, os jovens esperançosos que tinham uma imagem completamente falsa da guerra preferiam ir para as trincheiras do que serem considerados “covardes”. Essa concepção enganosa, como é mostrado na obra, também era fomentada pelos políticos, oficiais e generais, que em seus discursos reforçavam a ideia de que todos ali eram especiais e voltariam para casa como heróis, e que qualquer hesitação, qualquer sinal de covardia, seria uma traição à pátria. Monnet, em seu ensaio, utiliza o poema “Dulce et Decorum Est”, de Wilfred Owen, para argumentar que muitos filmes que acabam passando uma mensagem pró-guerra contam a chamada “velha mentira” do pensador Horácio: a de que morrer por sua pátria é “doce e decoroso” — daí o título do poema — , pensamento que “Nada de Novo no Front” desconstrói completamente.

Nada de Novo no Front I Reprodução: Netflix/IMDB

Depois de assistirmos ao nosso protagonista através de toda a carnificina, o filme expõe a vaidade, futilidade e o narcisismo dos líderes militares — que por um falso orgulho já haviam adiado o fim da guerra — retratando a realidade de que por ter um tom “poético”, a guerra deveria oficialmente terminar às 11 horas, do dia 11, do mês 11. O acordo de armistício havia sido assinado às 5 horas da manhã, e nesse meio tempo mais 3 mil homens morreram em vão. A narrativa então reforça que não existe nada de honroso, heroico, ou recompensador em uma guerra, quando no último minuto de conflito, quebra as expectativas que construímos em torno do protagonista, tendo um desfecho brutalmente não convencional.

A declaração de Truffaut se prova frequentemente mais certa do que errada, já que muitos filmes que apresentam os terrores da guerra também a representam como importante e legítima. “Nada de Novo no Front” rompe essa noção com sucesso, tornando-se uma das raras exceções na história do cinema em que a mensagem antiguerra consegue ser transmitida — e se fazer compreendida — para sua audiência de forma clara.

Nada de Novo no Front I Reprodução: Netflix/IMDB

“Dulce et Decorum Est” (Wilfred Owen)

(Tradução de Renato Amado Peixoto)

Homens marchavam adormecidos. Muitos tinham perdido suas botas
Mas tropeçavam, calçados de sangue. Todos estavam alquebrados; todos cegos;
Bêbados de fadiga; não escutavam nem mesmo o rugido
Dos desinteressantes obuses que, fora de alcance, explodiam atrás.

Gás! Gás! Rápido, amigos! — A euforia de conseguir ajustar, atabalhoadamente, aquelas máscaras desajeitadas, na hora exata;
Mas alguém urrava e caindo,
Debatia-se como se estivesse em chamas ou sob cal viva…
Embaçado, através das enevoadas lentes da máscara e de uma grossa luz verde;
Como se estivesse debaixo de um mar verde, eu o vi se afogar.

Em todos os meus sonhos, diante de meus olhos impotentes,
Ele mergulha sobre mim, sorvendo o ar, asfixiando, afogando.

Se em algum sonho sufocante você também pudesse passar
Por detrás da carroça em que nós o arremessamos.
E observar os olhos brancos contorcidos em sua face,
Seu rosto pendurado, como o de um demônio cansado de pecar;

Se você pudesse ouvir, a cada solavanco, o sangue
Gargarejar dos seus pulmões corrompidos em espumas,
Obscenas como câncer, amargas e esverdeadas como a regurgitação de um boi
Infames, incuráveis feridas sobre línguas inocentes,

Meu amigo, você não iria, com tão grande entusiasmo e idealismo, contar
Para as crianças desejosas de algumas glórias desesperadas,
A velha Mentira: É doce e honroso
Morrer pela pátria.

Nada de Novo no Front é um dos indicados ao Oscar na categoria de Melhor Filme

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