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“O fabricante de lágrimas”: amor além dos cristais

Filme alcançou o Top 1 da Netflix Brasil no seu final de semana de estreia

Isabela Daudt
Caderno 2
Published in
4 min readApr 24, 2024

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Reprodução: Divulgação/Netflix

“O fabricante de lágrimas” é um daqueles filmes que nos deixam com a garganta embargada do início ao fim. Baseado no livro homônimo de Erin Doom, a produção italiana chegou no catálogo da Netflix no dia 4 de abril de 2024. Com pouco mais de uma hora e 40 minutos de tela, o filme apresenta visivelmente ares de correria, com cenas curtas e com diálogos algumas vezes desconexos. Embora essa característica seja um problema em potencial, ao longo da obra essa pressa é justificada.

Nica, interpretada por Caterina Ferioli, no auge dos seus 17 anos, tem pressa para sair do orfanato que mora desde os oito anos, quando os pais morreram em um acidente de carro. Tal qual a borboleta que lhe empresta o nome, a protagonista deseja mudanças, e esse sonho está prestes a se concretizar, pois um casal tem interesse em adotá-la, e ela finalmente vê a possibilidade de sair do pesadelo em que vive. Contudo, as coisas não transcorrem da forma como Nica sempre imaginou, e o que parecia sua bênção, agora, passa a ser sua maldição, já que Rigel, interpretado por Simone Baldasseroni, também é escolhido para adoção pela mesma família.

Acontece que Rigel sempre foi o maior desafeto de Nica e, por consequência, a última pessoa que ela gostaria de ter como irmão. Ambos cresceram no orfanato apelidado de “Grave”, cova, em tradução livre, mas apenas Rigel era poupado das torturas cometidas pela diretora do local. No início do filme, vemos cenas do garoto gritando de dor, mas sempre sendo amparado pela mulher, e o motivo do sofrimento fica no ar, causando angústia. A mesma angústia que sentimos ao ver Nica, ainda criança, sendo presa e amarrada no porão do orfanato pela diretora, tendo apenas uma mão — até então desconhecida — que a consolava.

A verdade é que a história é guiada a partir da lenda do fabricante de lágrimas, que dá nome à obra, e que é muito conhecida pelos órfãos do Grave. O conto de fadas consiste na existência de uma figura sombria que mora em um mundo onde todos são vazios de emoções. Ela, no entanto, consegue produzir e doar lágrimas de cristal, o que acaba despertando todo tipo de sentimento sombrio preso no coração das pessoas. Para Nica, essa figura sempre foi bem representada por Rigel, que desde o dia em que chegou no orfanato implicava com ela. Na primeira vez em que se viram, Rigel arrancou o colar de borboleta que a menina usava, o qual havia sido presente de sua mãe recém morta. Portanto, para Nica, Rigel era o seu fabricante de lágrimas, e ela o temia por isso.

Reprodução: Divulgação/Netflix

Após a adoção, a relação dos dois — agora irmãos — passa a ser ainda mais conturbada — e é a partir desse momento que se torna um desafio desviar os olhos da tela. Nica não entendia por que Rigel, que nunca aceitou ser adotado por ninguém, tinha aceitado justamente os pais que a haviam escolhido como filha. E embora Nica temesse Rigel, ela jamais conseguiu odiá-lo e, por isso, não raramente, ia atrás dele. O drama, então, chega ao seu ápice. “O fabricante de lágrimas” é conduzido a partir de uma atmosfera de tensão sexual constante entre Nica e Rigel, transformando a narrativa em um romance proibido.

Os protagonistas, embora tentem repelir um ao outro, sempre se encontram novamente atraídos — em um ciclo que pode ser inclusive classificado como um relacionamento tóxico entre os dois, por oscilar entre proteção e agressão. Nesse sentido, o filme apresenta muitas cenas quentes, que geram certo grau de incômodo tanto nos personagens quanto nos telespectadores. Esse clima estranho é explicado pelos flashbacks ao longo da produção, que exploram os traumas enfrentados pelos dois durante os anos de Grave. Novamente, se destaca a pressa das cenas, que demonstra a urgência de Nica e Rigel, seja em superar o passado que os assombra, seja em viver o futuro que desejam — mas que é proibido.

É evidente que o roteiro poderia ter sido conduzido com mais calma, para que fosse possível enxergar, de fato, todas as nuances dos personagens e para que a correria não fosse demasiadamente sufocante, pois queremos saber logo onde essa história toda vai acabar. Ainda assim, conseguimos perceber algumas nuances de Rigel, por exemplo. O filme nos concede um respiro de alívio quando percebemos que a mão que arrancou o colar de Nica — e o guardou — foi a mesma mão que segurou a da menina na escuridão daquele porão, embora ela jamais desconfiasse disso. O respiro, apesar de tudo, não é suficiente. Continuamos com a garganta embargada, com pressa, com urgência.

A lição que fica, por conseguinte, é a de que todos temos um fabricante de lágrimas particular e que, de alguma maneira, também somos essa figura na vida de alguém. Até mesmo Rigel, que sempre pareceu ser poupado das torturas do orfanato, sofria, sobretudo, ao assistir, impotente, seus colegas — e Nica — sendo maltratados. O final, bem como toda narrativa, é angustiante — e nauseante -, mas torcemos pela superação. De ambos. Apesar das lágrimas, apesar dos cristais.

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