Música

O Luto e o Amor segundo Sufjan Stevens

“Javelin” é o décimo álbum da carreira do artista

gabriel ortega
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9 min readOct 24, 2023

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Tem duas coisas sobre as quais me dói pensar: amor e morte. Pior que os dois só se eu pensar na morte daqueles que eu amo. No novo álbum de Sufjan Stevens, ele pensa e reflete sobre alguns momentos de um relacionamento difícil e sobre a morte do amor de sua vida.

Recém lançado, no dia 6 de outubro de 2023, o décimo álbum do prolífico musicista e cantor, Sufjan Stevens, apresenta um bom “resumo” de sua carreira — mas de uma forma que consegue se diferenciar das outras obras. Antes de pensar esse novo projeto de Sufjan, é preciso explicar quem ele é e a qual é a sua relação com o público.

Sufjan Stevens é um homem, estadunidense, cis, branco, de 48 anos, que conseguia manter a vida privada bem longe dos holofotes e que nunca tinha revelado sua sexualidade, mas que sua base de fãs (que se resume a jovens alternativos relativamente mais novos que eles) supunha que é gay. Os fãs brincam com a idade dele, que ele é extremamente religioso, mas de um jeito mais místico do que qualquer outra coisa. Sua carreira é repleta de álbuns e projetos que se relacionam e que não possuem nenhuma conexão entre si.

Começar a escutar a música de Sufjan é sempre um caminho meio complicado. Ele produz músicas muito diversas que vão do pop experimental ao folk íntimo — que se resume à voz e banjo — passando pela música ambiente. Existem diversos guias na Internet sobre caminhos para se percorrer e se aprofundar na carreira do artista: se você gosta de uma ambientação parecida com musicais da Disney, provavelmente vai gostar de Illinois (2005); se prefere um pop mais envolvente, The Age of Adz (2010) é o caminho, e se você tem preferência por músicas bem mais intimistas e sentimentais, Carrie & Lowell (2015) é a escolha perfeita.

Esses são os três álbuns principais de sua carreira, que funcionam como pilares para sua discografia. Mesmo assim, existe o delicioso Seven Swans (2004), que é ainda mais intimista que Carrie & Lowell, The Ascension (2020), que é tão explosivo quanto The Age of Adz, e Greetings from Michigan, The Great Lake State (2003), que, junto com Illinois, carrega uma sonoridade rica e doce para contar a história dos 56 estados dos Estados Unidos (um projeto que nunca foi pra frente).

Cronologicamente falando, no fim disso tudo, está Javelin (2023), um álbum que consegue atingir os mesmos ápices sonoros de The Age of Adz, a mesma doçura de Illinois; a mesma sinceridade ao olhar para a morte de uma pessoa querida que Carrie & Lowell carrega e a mesma temática religiosa de Seven Swans. Javelin consegue ser uma obra que une tudo do catálogo de Sufjan, mas que ainda assim se mantém extremamente único e ímpar em relação ao resto.

Até o lançamento desse álbum, Sufjan nunca tinha assumido sua sexualidade. Foi num post do Instagram que ele declarou que sua nova obra é inspirada na morte do amor de sua vida, Evans Richardson.

JAVELIN saiu hoje. Obrigado por me ouvirem. Eu amo vocês.

Este álbum é dedicado à luz da minha vida, meu amado parceiro e melhor amigo, Evans Richardson, que faleceu em abril. Ele era uma jóia absoluta de pessoa, cheia de vida, amor, risadas, curiosidade, integridade, e alegria. Ele era um daqueles raros e bonitos que só se encontra uma vez na vida — precioso, impecável e absolutamente excepcional em todos os sentidos.

Sei que as relações podem ser muito difíceis às vezes, mas vale sempre a pena dedicar-se ao trabalho duro e cuidar de quem amamos, especialmente das bonitas, que são poucas e distantes. Se por acaso encontrares esse tipo de amor, segura-o bem, aperta-o, saboreia-o, cuida-o e dá-lhe tudo o que tens, especialmente em momentos de problemas. Sejam gentis, sejam fortes, sejam pacientes, sejam perdoadores, sejam vigorosos, sejam sábios e sejam vocês mesmos. Viva cada dia como se fosse o último, com plenitude e graça, com reverência e amor, com gratidão e alegria. Este é o dia que o Senhor fez. Vamos regozijar-nos e alegrar-nos nele.

Obrigado. Eu amo vocês. XOS

Não é a primeira vez que Sufjan fala sobre morte em suas músicas. Em Carrie & Lowell, Stevens explorou a morte de sua mãe, Carrie, de seu padrasto, Lowell, e a sua relação conflituosa com os dois.

Todas as músicas de Sufjan carregam uma verdade e tocam o público de uma forma tão forte que é impossível não se emocionar com as baladas que lamentam e questionam a vida, o amor e as relações humanas.

Em Javelin, é estranhamente diferente. É um álbum extremamente tocante, sem dúvidas, mas que junta os elementos explosivos dos outros lançamentos do artista, contrastando as letras tristes. É muito interessante pensar que, se não fosse o anúncio de que esse álbum é inspirado na morte de alguém, poderia muito bem ser sobre um término de um relacionamento extremamente complicado.

É muito difícil que eu consiga prestar atenção nas letras e entender o que elas dizem. Sou muito influenciado nas primeiras vezes pela ambientação e os instrumentos da canção. Escutei Javelin pela primeira vez numa madrugada e esperava estar devastado. Incrivelmente, eu saí bem inteiro, mas emocionado com a história por trás do álbum e fiquei pensando no que eu perdi/não entendi.

Foi quando vi um vídeo de um crítico de música que disse “é um álbum tão poderoso que eu não vou querer escutar nunca mais” que percebi que perdi alguma coisa bem grande. Assim descobri que as coisas que eu não pesquei são o pretexto religioso/regional do Sufjan.

Já na primeira faixa do álbum, Goodbye Evergreen, ele fala bastante sobre perder a força/esperança/luz. Achava que Evergreen (sempre verde, em português) era uma localidade que marcou a relação dele com Evans, mas tem um significado religioso bem poderoso. Evergreen são “um dos tipos de árvores que são usadas como árvores de Natal, pois resistem ao inverno rigoroso e se mantêm verdes. A fé em Deus pode resistir a qualquer tentação ou provação e manter a alma sempre verde”.

O que me chamou a atenção, nas primeiras vezes, é como apesar das letras mais tristes, que remetem ao Carrie & Lowell, tanto a entonação da voz dele quanto a instrumentação estão muito diferentes. Enquanto no álbum sobre a morte de sua mãe e padrasto Sufjan canta com uma voz suave e frágil, nessa música ele é mais assertivo e é acompanhado porum coro muito lindo — que lembra bem a primeira faixa de Age of Adz.

Já fazendo uma reflexão a respeito do álbum em geral, mas principalmente sobre a primeira música, apesar dos momentos tristes e letras reflexivas, a sonoridade e instrumentação não deixa com que a depressão carregue o ouvinte para baixo. Diferente de outros álbuns que falam sobre a morte de alguém importante, como A Crow Looked at Me (2017), do Mount Eerie, que carregam o luto muito na frente (o que não é um problema, longe disso), Sufjan decide tomar um caminho alternativo e, de certa forma, não cair para o primeiro instinto. Acho que, no fim, é muito sobre celebrar a vida.

São dez músicas que compõem Javelin. A Running Start, a segunda faixa e que talvez seja a música mais doce do álbum, é sobre o início do amor, os primeiros momentos de um casal e as pequenas coisas e demonstrações de afeto.

Já em Will Anybody Ever Love Me?, a música fica em volta dessa pergunta tão poderosa que é tão existencialista: Será que alguém vai me amar? É uma música extremamente simples com um refrão que se aproveita da sua simplicidade como atributo de verdade, como se não tivesse analogias/metáforas que pudessem demonstrar o estado do eu lírico. Uma coisa que eu fiquei me perguntando sobre essa música é: quando ela foi escrita? Antes dele conhecer o Evans? Depois da morte do parceiro? Acho que isso dá novos níveis de interpretação para a significação da música, no conjunto total. Será que alguém vai amar ele como o Evans? Será que ele vai conseguir achar o amor de novo? Foi algo tão simples, mas poderoso.

Everything That Rises é mais uma música com um subtexto religioso bem forte que fez com que eu não me conectasse de primeira com ela. Genuflecting Ghost, também, é uma faixa bastante espiritual e com uma letra que fala sobre coisas maiores que a vida. Desde se ele se daria no lugar do seu amado, se ele parte logo para o mesmo lugar que o parceiro, os momentos juntos no pós-vida. My Red Little Fox é uma música que usa de metáforas e mais subtexto religioso para falar com alguém precioso e importante que está perdido.

So You Are Tired é uma música bastante dolorida, uma das mais difíceis do álbum. É uma grande reflexão sobre o relacionamento de duas pessoas, uma ter se cansado da outra, as brigas e as coisas que se arrependem de ter dito.

Javelin (To Have and To Hold) foi uma das músicas que eu tava mais esperançoso de gostar e talvez tenha sido uma das que eu menos me conectei. Preciso deixar claro que, até minutos antes de escrever essas palavras, eu não sabia o que “javelin” significava (para quem também não sabe: é dardo). Enfim, eu achava que, por carregar o título do álbum, ela seria mais desenvolvida, mas é uma música que funciona mais como um interlúdio para as duas últimas faixas.

Eu entendi que Shit Talk é a peça central do álbum (e é a penúltima música). Foi, certamente, a música que eu mais pensei desde a primeira vez que eu escutei o álbum. Quando eu baixei o álbum pra escutar, no meu celular, eu não tinha acesso aos minutos de cada uma, só ao espaço de megabytes e, comparando com as outras, ela era enorme. Enquanto as outras têm, no máximo, 10 MB, essa tem 20 MB. Ela é uma música bem simples de quase nove minutos. Nenhum desses quase nove minutos são entediantes e chatos. A música termina repetindo algo como se fosse um mantra, mas isso não é algo ruim. De certa forma, se eu não soubesse do contexto do álbum, talvez eu achasse meio básica ou algo parecido, mas, por entender que ele está falando sobre a relação que ele tinha com o seu parceiro que recém faleceu, ela ganha um outro sentido. Além das letras, a sonoridade dessa música em especial (mas da obra como um todo) é incrível, linda e revigorante. É muito impressionante que esse projeto, mesmo sendo complexo e sonoramente desenvolvido, foi produzido pelo próprio Sufjan com pouca ajuda nos vocais de amigas dele.

Por fim, na última faixa, temos um cover de uma música do Neil Young, There’s a World. Foi chocante ver que o Sufjan decidiu terminar o seu projeto que fala sobre a morte do seu parceiro com uma música de uma outra pessoa.

Eu sou alguém que gosta muito de Neil Young e eu não sabia que música era essa. Mesmo estando no meu álbum favorito dele, Harvest (1972), é uma faixa que, feita pelo Neil, eu sou bem indiferente. Mas pelo Sufjan é outra história.

É uma música que parece ter sido escrita por ele. Claro, ela foi re-arranjada para estar tematicamente ligada com o resto do álbum. É lindo ver que, mesmo com tanta tristeza em volta dessas músicas, o Sufjan consegue terminar com algum tipo de esperança. Ele não demonstra estar angustiado com a morte de Evans; ele demonstra estar pensando que ele está num lugar melhor.

Por fim, só posso dizer que o Sufjan Stevens consegue, mais uma vez, me cativar ao longo de um dos seus projetos. Acho que, se não conhecer tanto a carreira dele, esse é um bom ponto para começar.

A temática do álbum está bem de acordo com o resto da sua carreira, mesmo que a abordagem seja diferente. É fascinante como algo que fala sobre imperfeições, morte, partida, solidão e indecisão consegue ser tão vivo.

Acredito que esse álbum tem uma ligação temática muito forte com o livro “O Ano de Pensamento Mágico”, de Joan Didion. Ambos se propõem a pensar na morte do amor de formas inusitadas e não convencionais: Sufjan quer pensar na vida e nos momentos vividos entre eles e Joan não quer deixar o seu marido partir sem antes entender de forma extremamente analítica tudo que aconteceu. Mesmo que a energia das obras sejam bem diferentes, entre si, acredito que são duas faces da mesma moeda e se complementam muito bem.

Depois de falar tão bem de Javelin, eu volto pro início do texto: eu ainda sinto muito medo ao falar de amor e morte. Tenho medo de deixar que alguém me ame, tenho medo de perder o amor da minha vida, de voltar a viver sem amor, de não conseguir recuperar. Isso tudo pra dizer que eu admiro muito tanto o Sufjan quanto a Joan. Para mim, é como olhar pra imensidão e isso me paralisa. Me admira quem consegue fazer algo com isso.

Esse texto, que é sobre um álbum e um artista, acabou sendo sobre mim. O Sufjan tem uma música que se chama John Wayne Gace, Jr. que é sobre outra pessoa, mas, no fim, é sobre ele. Eu tenho esse texto.

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gabriel ortega
Caderno 2

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