Literatura Brasileira

O que você não tem mais que te entristece tanto?

Com esse questionamento, Carla Madeira inaugura o primeiro dos muitos diálogos travados entre Biá e Olívia, protagonistas de “A natureza da mordida”

Ana Luiza Barbosa
Caderno 2
Published in
3 min readJun 28, 2024

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Capa da 7ª ed. de “A natureza da mordida”. Reprodução: Editora Record.

Quatro anos após “Tudo é rio”, Carla Madeira retorna dando a luz a “A natureza da mordida”. Lançada em 2018, a obra ratifica e dá continuidade ao sucesso da escritora, que tem ganhado visibilidade e acumulado leitores ao longo do tempo.

Biá é uma fiel freguesa do sebo de Rodolfo e lá comparece periodicamente há muitos anos dos que carrega consigo, sentando-se na mesma mesa de uma forma quase que ritualística. Em um dos tantos domingos em que traçou esse mesmo percurso, depara-se com um empecilho: uma garota, sentada em “sua” mesa, escrevia ininterruptamente, escrevia alheia a tudo ao seu redor.

Obstinada a reconquistar o lugar que era seu por direito, Biá se aproximava no momento exato em que a moça parou. Encerrou a escrita e pôs-se a chorar; lia e relia suas próprias palavras em um pranto que despertou a curiosidade da senhora, que se juntou a ela disposta a conhecer a história que despertava tais lágrimas.

Olívia, o que você não tem mais que te entristece tanto?

Naquele encontro, Biá descobriu que elas eram unidas não somente por uma mesa, mas por uma dor em comum. Ambas conheciam como ninguém a dor da ausência. Olívia contou, pela primeira vez, uma história que viria a contar a ela muitas vezes mais; Biá, com as marcas do tempo e da vida refletidas em sua memória, esquecia. E para não esquecer, anotava. Sobre seu primeiro contato com Olívia, suas anotações dizem mais sobre a amizade a ser construída do que pode ser dito por terceiros. “Olívia – meu oásis”.

Pelos domingos que se seguiram, Biá fora ao sebo como de costume, em busca não de livros, mas de Olívia. A garota esperava por ela na mesma mesa, pronta para falar sobre sua perda. A história que assombrava Olívia era sobre uma antiga amizade que se esvaiu: Rita, sua melhor amiga e vizinha durante a infância, escapou-lhe das mãos como areia, deixando apenas uma grande e atormentadora dúvida ressoando em sua mente. Por quê?

Junto de Biá, o leitor conhece, aos poucos, o doloroso fardo que Olívia carrega. E, junto desta, desvenda Biá e uma perda que ela relutantemente traz à tona. Sua dor também é rodeada por um enorme “por quê?”. Teodoro, grande amor de Biá e pai de sua filha, deixou-a, e, em seu lugar, permaneceu uma ausência tão grande que presença alguma era capaz de suprir. Olívia, no entanto, deu a ela um refúgio, um oásis pelo qual esperar.

A narrativa é divida em duas partes, as anotações de Biá e os encontros das duas sob o olhar de Olívia, situadas em linhas temporais diferentes, o que revela, pouco a pouco, o passado desconcertante que se entrelaça ao presente. “A natureza da mordida” fala sobre perda de uma forma linda e tocante e apresenta, quando comparado às demais obras da autora, uma conotação mais suave e menos violenta, embora reafirme a pesada carga emocional que se mostra, até o momento, como característica mais forte de seus escritos.

Não é a frase — falei entusiasmada — , é existir alguém capaz de escrevê-la. Alguém capaz de dizer tão imensamente mais do que escreve.

A escritora, através de uma linguagem poética e envolvente, foi capaz de conciliar uma vultuosa tristeza com uma beleza genuína e acolhedora. Ela faz com que o leitor sinta com veemência, tal qual as personagens, a dor de uma mordida profunda que deixa marcas permanentes, mas mostra também a redenção e o findar da dor. Responde aos porquês despertados no decorrer da leitura e, com excelência, responde por que “A natureza da mordida” merece ser lido. Carla Madeira diz muito mais do que escreve.

Carla Madeira no Trilha de Letras. Reprodução: Divulgação / TV Brasil

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