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“O Retorno de Simone Biles”: documentário merece medalha de ouro

Dois primeiros episódios já estão disponíveis na Netflix

Isabela Daudt
Caderno 2
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6 min read1 day ago

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Reprodução: Divulgação/SBT Sports

“O Retorno de Simone Biles” chegou na Netflix na quinta-feira, 18 de julho, oito dias antes da abertura das olimpíadas de Paris 2024 — o terceiro ciclo olímpico de Biles. Contudo, para a ginasta mais condecorada dos Estados Unidos — e do mundo — , essa será apenas a segunda vez em que ela participará da competição mais importante da ginástica artística estando 100% saudável, física e, sobretudo, mentalmente. E é justamente sobre isso que os dois episódios do documentário lançados até então pelo streaming falam: saúde mental.

Com respectivamente 55 e 49 minutos de duração, a história retratada pelo documentário faz jus à inicial da palavra “retorno” em caixa alta no título. No que seria o auge da sua carreira, nas olimpíadas de Tóquio 2020 — quando Biles era o “rosto” do evento — ela sofreu do que na ginástica se costuma chamar de “twisties”. Isso acontece quando a ginasta se perde no ar no meio de um movimento, o que torna a aterrissagem perigosa e põe em risco a integridade física dela, tendo em vista a complexidade das acrobacias executadas, especialmente por Biles. O fato é que se até a “cara” das olimpíadas de 2020 teve a coragem de optar se retirar dos jogos por conta de questões mentais, o esporte de maneira geral teve de se adaptar — e o documentário fala muito sobre a importância de dar o exemplo.

Desde Rio 2016, quando se consagrou em cenário olímpico, Biles passou a ser tratada como um “monstro”, um fenômeno — que de fato é — , mas Tóquio serviu para mostrar para o mundo que, às vezes, ela é apenas Simone. Um ponto forte da produção da Netflix é que ela soube transmitir essa sutileza. Os dois primeiros episódios trazem desde cenas inéditas da ginasta ainda criança, passando pela sua segunda convocação para a equipe olímpica, até a fatídica apresentação de salto na final por equipes de 2020. Além disso, claro, eles extrapolam esse universo já conhecido pelo fã de ginástica e apresentam, com riqueza de imagens e registros, o processo de retomada de Biles após “twisties”.

Naturalmente, graças ao fato de a ginasta já ser uma estrela mundial na época, era de se esperar que houvesse muitas imagens sendo documentadas, inclusive da sua família, que estava nos Estados Unidos por causa das restrições da pandemia, mas o que de fato surpreende é a trilha sonora. A música tema da série documental, “Destiny”, de Lauren Light, foi muito bem escolhida e encaixada na produção, especialmente quando acompanha vídeos da Simone voltando às acrobacias no ginásio após Tóquio 2020, vestida de branco. Aos meus olhos, a conotação da cena é de redenção, tanto de um passado não planejado quanto de um futuro desejado, mas não pressionado.

Reprodução: Divulgação/Netflix

Um dos indicadores de que o documentário sobre Simone Biles teve um resultado final fantástico é, ironicamente, a capacidade de ele extrapolar Simone Biles. Através dos episódios, adentramos a mente da ginasta e conhecemos suas vivências e traumas que contribuíram para ela chegar na situação extrema dos “twisties” e abandonar as últimas olimpíadas. Padrão de beleza, racismo, adoção, pandemia, depressão e abuso sexual são temáticas relevantes que foram muito bem exploradas, mesmo em um espaço de tempo não tão extenso.

“Tóquio foi a única vez que não trancei o cabelo da Simone. Ela é adulta. Digo, ela pode trançar o próprio cabelo, mas não se trata disso.” — Nellie Biles

O cabelo de Biles não foi pautado apenas pela sua própria mãe, mas pelo mundo inteiro. Logo após se tornar multicampeã em Rio 2016, o que a internet mais estava comentando não era sobre as suas medalhas, era sobre seu cabelo estar “bagunçado”. Uma mulher, negra, multicampeã olímpica. Será que o problema era mesmo o seu penteado? A série documental abordou com expertise a questão do racismo e dos padrões de beleza impostos na ginástica artística que, antes do destaque de Betty Okino, Dominique Dawes e Gabby Douglas — referências de Biles — eram hegemônicos: atletas brancas e loiras com o cabelo sempre muito bem preso.

Durante esse mesmo período, a série conta a conflituosa depressão que tomou conta de Biles, afinal, como ela poderia não estar bem se acabara de ganhar quatro medalhas douradas e uma bronzeada na sua primeira olimpíada. No entanto, ela pensava:

“Ah droga. Alcancei meu ápice aos 19 anos.” — Simone Biles

E os traumas não pararam por aí. Logo após retornar para casa, o escândalo de abuso sexual cometido pelo ex-médico chefe da equipe olímpica de ginástica artística dos Estados Unidos, Larry Nassar, veio à tona — e Simone foi uma de suas vítimas. Ela precisou, então, enfrentar esse fantasma do passado e assumiu publicamente que sofreu essa violência.

Retomando, a fala de Nellie, mãe adotiva e avó biológica de Biles, foi marcante e muito bem colocada na montagem. Enquanto assistimos a corrida contra o tempo para a ginasta superar os “twisties” e retomar a segurança e, especialmente, o prazer nos treinos, cujo retorno foi gradual, para voltar ao cenário internacional no mundial de Antuérpia 2023, a mensagem da sua mãe é um respiro. É aí que percebemos que de fato não era um momento de normalidade no mundo, devido à pandemia, e Simone detalha o quanto lhe causou estranheza competir em um ginásio vazio e silencioso. Nellie não trançou os cabelos da filha, não estava sequer no mesmo continente que ela, assim, é no mínimo justo e compreensível tudo que levou ao momento derradeiro da desistência em Tóquio 2020.

No entanto, Biles estava enganada, os 19 não foram seu ápice e o Japão não foi o seu fim, ela Retornou. Sim, com “r” maiúsculo. Nesse mundial, ela homologou seu segundo salto, até então o mais difícil já registrado no código de pontuação da modalidade. É extraordinário pensar que o mesmo aparelho que a tirou de Tóquio, a colocou no lugar mais alto do pódio em Antuérpia. Mas todos já sabíamos que ela era extraordinária. A novidade, reforçada pelo documentário, é que ela também é humana — por mais incrível que possa parecer. Seguindo essa linha de raciocínio, a produção teve escolhas acertadas em relação às cenas que ilustram a importância do lazer em família, do descanso físico e mental e, claro, de fazer terapia.

“O Retorno de Simone Biles” foi impecável em relação às entrevistas utilizadas, seja em relação ao conteúdo abordado, seja em relação à seleção dos entrevistados, todos demasiado relevantes para compor a história da ginasta mais premiada dos Estados Unidos. Apesar desse êxito, a minha parte favorita é outra: assistir Biles zombar daqueles que a criticaram duramente após sua saída dos últimos jogos olímpicos e, inclusive, desmereceram sua competência e autoridade no esporte — e nisso incluo a grande mídia, sim, mas também as centenas de usuários das redes sociais que se intitulam “fãs” da ginasta e a insultaram sem rodeios.

“Você nem consegue fazer uma cambalhota”, sentencia a multicampeã olímpica para o emissor de um comentário desrespeitoso.

Reprodução: Divulgação/Netflix

Por conseguinte, é evidente que a pressão de ter sido o “rosto” de Tóquio 2020 abalou Simone Biles, ainda mais levando em consideração todas as suas vivências e traumas anteriores, como bem expôs a série documental da Netflix. Mas ela, mais uma vez, provou para o mundo, e para si própria, que sua retirada olímpica foi só mais uma queda na sua carreira em direção ao seu grande Retorno na ginástica artística. Finalmente, para Paris 2024, é de se esperar que Biles retorne com seis ouros. Contudo, para Simone, espero que o mundo tenha entendido o recado, é preciso somente esperar que ela volte saudável, sendo exemplo para milhares de atletas no mundo de que a integridade mental é tão indispensável quanto a física, embora não possa ser visualizada. Não há dúvidas e o documentário mostra isso: Simone Biles retorna mais forte e consciente do que nunca.

Um gostinho final para nós brasileiros é um trecho do teaser de divulgação dos próximos dois e últimos episódios:

“Rebeca Andrade. Ela é a que mais me assusta!”, diz a lenda da ginástica artística mundial, Simone Biles.

A disputa em Paris promete ser de tirar o fôlego.

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