Cinema

O terceiro mundo explodiu

Entre trancos e barrancos, o cinema nacional completou 125 anos no dia 19 de junho. A data é marcada pela primeira filmagem cinematográfica no país, feita pelos irmãos italianos Paschoal Affonso e Segreto: um pequeno curta da chegada na Baía de Guanabara

gabriel ortega
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5 min readJul 7, 2023

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O clima desse aniversário é um pouco estranho; quem for pesquisar o termo “cinema brasileiro”, no Youtube, encontrará uma miríade de vídeos clamando que o cinema nacional é, em si, ruim, um lixo, raso e limitado. Interessante destacar que essa crítica pode vir de dois lugares bem diferentes: uma elite intelectual que diz que o apelo popular dos filmes brasileiros restringem a arte, ou um grupo que não vê uma produção refletindo aquilo feito lá fora (lá fora é só um sinônimo para Hollywood, filmes de super-herói, grandes produções e filmes que usam efeitos visuais exuberantes).

Mesmo que esses dois perfis sejam diferentes, eles concordam no ponto de que o cinema nacional é ruim. Curiosamente, existe um filme dos anos 60 que, de certa forma, resolve os problemas que os grupos possuem com o cinema brasileiro: O Bandido da Luz Vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla em 1968.

Inspirado pelo cinema de Orson Welles e de Jean-Luc Godard, o jovem de 22 anos, Sganzerla, lança seu primeiro filme, baseado na história real de João Acácio, um criminoso que, durante o início dos anos 60, aterrorizou São Paulo cometendo 4 assassinatos, 77 assaltos e mais de 100 estupros. Esse filme é um clássico marcante do movimento do Cinema Marginal que conseguiu, ao mesmo tempo, ser um sucesso entre o público e ter uma linguagem altamente experimental, que misturava diversos gêneros.

O longa é categorizado como um suspense policial no IMDb e, junto com a minha descrição da inspiração por trás do filme, pode-se pensar que a obra é um simples filme de investigação policial noir onde a polícia caça o ladrão. Ledo engano! Esse filme é uma comédia, um faroeste, um estudo de personagem, uma crítica social, uma maçaroca que une, de forma tão coesa, quase todos os gêneros possíveis para criar algo único. A única coisa que eu consigo comparar a esse filme de 92 minutos é a cena marcante de 2001: Uma Odisseia no Espaço, onde o personagem viaja no tempo e tudo vira uma explosão de cores que são tão rápidas que nos confundem, mas passam a ideia de uma jornada.

Outras coisas influenciam a explosão sensorial. Por exemplo, o filme inicia com um painel publicitário de led anunciando “Os personagens não pertencem ao Mundo, mas ao Terceiro Mundo”, “Guerra total na Boca do Lixo” e continua com uma apresentação da ficha técnica do filme. Acompanhado a isso, tem-se a narração de um homem e uma mulher que ficam alternando a fala entre um e outro, emulando a narração de um rádio: “Decretado, hoje, Estado de Sítio, no país”, “Trata-se sobre um faroeste sobre o Terceiro Mundo”. No momento em que o primeiro narrador para de falar, outra voz masculina chega: “Eu sei que fracassei. Minha mãe tentou me abortar para mim não morrer de fome”. Assim, esses vários estímulos sensoriais que brincam entre mídias fazem com que o espectador fique desorientado — o que é a proposta de ambiente do filme.

É uma obra extremamente frenética. As coisas acontecem e não podem ser processadas. De certa forma, essa ideia de explosão sensorial se mantém mais atual do que nunca: a mistura naturalizada de mídias — o uso de vídeo junto ao áudio, a televisão ligada junto ao computador, o jornal televisivo que usa materiais da internet para se estruturar — tudo está mais presente do que nos anos 60. Além disso, acho que a barreira de ficção e realidade é um outro ponto muito atual: os narradores passam de falar sobre o golpe militar para falar sobre o filme de maneira tão natural que nos deixa desorientado; hoje em dia, a gente olha para o celular e vê notícias que podem ser falsas ao lado de verdadeiras deixando a gente atordoados de tanta informação.

Se já não ficou claro, acredito que esse é um filme muito inteligente. Ele se manteve atemporal durante 55 anos. O sensacionalismo midiático que é retratado na obra me lembra muito os casos de Lázaro e dos massacres nas escolas. É um filme que olha para a realidade do Brasil dos anos 60, já na ditadura militar, e ri. Como o bandido diz: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”.

Junto a essa fala, outro discurso que me marcou muito foi o “O terceiro Mundo vai explodir!”. As duas frases passam uma forte ideia de crise social, de uma instabilidade generalizada no ar, e de que as pessoas estão insatisfeitas com seu horizonte de possibilidades. Acho que isso é outro ponto que se relaciona com o presente brasileiro; o clima político da época de golpe militar recém decretado e chegada dos militares, de novo, no governo com o Bolsonaro. Mas, mesmo assim, não poder fazer nada, só avacalhar, se refere muito à esquerda, também. Nos anos 60, a esquerda brasileira falhou e não conseguiu fazer as reformas necessárias, enquanto, atualmente, ela precisou ir para o centro para conseguir se eleger.

A forma que ele consegue fazer uma sátira ácida, forte e apocalíptica é impressionante. De certa forma, é um filme extremamente fatalista. Ele disse que o terceiro Mundo ia explodir, que não tinha o que fazer impedir e que não via nada para ser feito e melhorar sua realidade. Assim, o caos é a única saída, como quem diz “já que estamos aqui, vamos rir da situação”.

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gabriel ortega
Caderno 2

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