Os inúmeros vencedores do Eurovision 2021

A banda italiana Måneskin conquistou o troféu dedicado ao primeiro lugar, mas diversos outros artistas conseguiram divulgar belas histórias no festival sexagenário

Arthur Mezacasa
Caderno 2
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6 min readJul 6, 2021

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A banda italiana Måneskin esquentou, literalmente, o palco do Eurovision 2021. A Itália conquistou o título do festival pela terceira vez (Foto: Jordy Brada)

O festival Eurovision Song Contest é reconhecido globalmente como um dos maiores e mais antigos programas musicais da televisão. Funcionando como uma espécie de Jogos Olímpicos do entretenimento ― em que vários países da Europa e cercanias são representados por uma música que compete pelos votos de um júri e dos telespectadores ― a edição de 2021 foi marcante por ser a primeira após um inédito cancelamento. Realizado anualmente desde 1956, o Eurovision só foi pausado em 2020 devido à potência da pandemia de Covid. Mas nesse ano o concurso voltou e trouxe muitas histórias impressionantes no mix de artistas que se apresentaram no palco em Roterdã.

Dana International foi a primeira mulher transgênero a vencer o Eurovision. Ela representou Israel no concurso de 1998 (Foto: EBU)

Apesar da longeva história do festival, na virada do milênio o Eurovision acabou se consolidando como uma plataforma de diversidade. Em 1998 Dana International foi a primeira pessoa transgênero a levar o troféu. De 2001 a 2008 todos os países vencedores foram do leste da Europa, trazendo novas línguas, ritmos e tradições para o concurso. Em 2014 a Áustria conquistou o primeiro lugar com a drag queen Conchita Wurst. Na última edição, várias histórias como essas fizeram com que o Eurovision 2021 fosse um dos mais diversos e interessantes dos últimos tempos.

Podemos começar mencionando a vencedora Itália. Representada pela banda de rock Måneskin, essa foi a terceira vez que o país conquistou o topo do pódio. Esse feito foi conquistado com a música Zitti e Buoni, um som meio glam-rock, meio White Stripes, alto e furioso, bem distante do pop inofensivo comumente encontrado no Eurovision. O italiano da letra não é tão acessível quanto o inglês utilizado pela maioria dos artistas e o look do vocalista e dos membros da banda fogem bastante do “tradicional”, seguindo uma estética sem gêneros. O país fez uma aposta ousada ao enviá-los para serem assistidos pelas centenas de milhões de espectadores do concurso (cuja audiência costuma ficar próxima dos 200 milhões de pessoas), mas aparentemente acertou.

Outros dois países que fugiram da fórmula “agrade tantos quanto puder” usualmente empregada foram a Ucrânia e a Rússia.

Representada pela banda Go-A, a Ucrânia conquistou um quinto lugar expressivo na pontuação, em grande parte devido ao voto do público (os jurados não ficaram tão satisfeitos com a heterodoxia da canção Shum). Misturando o estilo de canto folclórico chamado “voz branca” com batidas trance, a vocalista Kateryna trouxe uma mensagem em ucraniano falando sobre o despertar da primavera. A referência aqui não é à estação do ano, mas sim ao surgimento de uma nova perspectiva sobre o mundo pós-pandemia. O fato de Kateryna ser nativa de uma região próxima da usina de Chernobyl, onde a natureza ano a ano prova sua resiliência frente à irresponsabilidade humana, faz a “primavera” ganhar um significado ainda mais profundo.

Manizha, representante da Rússia, cantou sobre empoderamento feminino e ironizou o machismo na sociedade russa (Foto: Thomas Hanses / EBU)

A Rússia por sua vez foi representada por Manizha, cantora nascida no Tajiquistão e que emigrou como refugiada para terras russas durante a Guerra Civil Tajique, nos anos 1990. Ela foi escolhida pelo público para representar a Rússia no Dia Internacional da Mulher, curiosamente, com uma canção que ironiza o machismo da sociedade e encoraja suas compatriotas a não se curvarem à imposições de gênero. A Rússia, como é sabido pela comunidade internacional, tem grandes problemas em respeitar os direitos humanos. Nas semanas logo após a escolha de Manizha para levar a bandeira russa ao palco do Eurovision, grupos religiosos e militares pediram aos órgãos públicos do país o banimento da música e o cancelamento da participação no concurso. A cantora acabou podendo participar sem maiores restrições no final das contas, e usou as entrevistas coletivas no evento para falar sobre direitos LGBTQIA+, diversidade cultural e racismo. A cantora é, desde 2019, uma embaixadora da boa vontade da ACNUR, agência da ONU para refugiados.

Além de Manizha, vários outros artistas participantes do Eurovision 2021 também possuem histórico de imigração e vários deles relataram já ter sofrido com preconceitos raciais e religiosos. Tusse, da Suécia, nasceu na República Democrática do Congo, e chegou ao país que representou como refugiado. Benny Cristo, da República Tcheca, contou em entrevistas que sua mãe angolana sofreu agressões em público quando se mudou para a Europa. Em 2021 o Eurovision contou com um número expressivo ― ainda que minoritário ― de artistas negros, vários deles programados para participar da edição de 2020, cancelada, voltando com novas músicas para subir de fato ao palco.

Ao longo dos anos o Eurovision se consolidou como uma plataforma de celebração da diversidade. A drag queen austríaca Cconchita Wurst venceu o festival em 2014 (Foto: Jonathan Nackstrand / AFP)

Carregando a bandeira do país-sede do evento (a Holanda), Jeangu Macrooy aproveitou a visibilidade dada pelo festival e celebrou a cultura da sua terra-natal: o Suriname. A canção de Macrooy trouxe em alguns versos o idioma sranan, considerado nos séculos passados uma língua de baixo nível, por ser uma “corrupção” do inglês trazido por colonizadores para as terras sul-americanas desenvolvida pela população escravizada. Com versos invocando o passado de opressão forçado pelos impérios europeus, Macrooy escreveu a música como uma maneira de demonstrar a resiliência da população negra no Suriname. Acompanhado de seu irmão gêmeo na performance ao vivo, foi bastante aplaudido pelo público que estava presente na Ahoy Arena, mas acabou com zero pontos na votação popular (a Holanda acabou na 23ª de 26 posições na etapa final).

Não muito distante no placar, a Noruega (que terminou em 18° lugar) também trouxe um personagem inspirador como representante. Andreas Haukeland, que usa o nome artístico TIX, trouxe à tona o bullying sofrido por crianças que, como ele, possuem síndrome de Tourette. Em sua infância, Haukeland ganhou o apelido depreciativo “Tix” de colegas da escola, por causa dos tiques involuntários característicos de sua condição médica. O empoderamento do apelido e sua abertura para falar sobre a síndrome, bem como o som pop radio-friendly, fez TIX se tornar um dos artistas de maior destaque nos últimos anos na Noruega. Em 2018 ele foi um dos autores da música Sweet But Psycho, da cantora americana Ava Max, que foi certificada com Disco de Diamante no mercado brasileiro.

Os apresentadores da 65ª edição do Eurovision Song Contest. Da esquerda para a direita: Edsilia Rombley, Chantal Janzen, Jan Smit e Nikkie de Jager (Foto: Thomas Hanses / EBU)

Mas não foram apenas os competidores que puderam se considerar vitoriosos no Eurovision 2021. Uma dos quatro apresentadores do programa foi a influenciadora de beleza Nikkie de Jager. Conhecida nas redes sociais como NikkieTutorials, ela esteve nos holofotes em janeiro de 2020 ao se assumir uma mulher transexual. Em um vídeo que hoje conta com 37 milhões de visualizações, Nikkie disse ter sido chantageada por uma pessoa que ameaçou “revelar seu segredo para a mídia”. Para se livrar da chantagem, ela se antecipou e assumiu sua transexualidade. Logo após esse vídeo viralizar, a influencer foi convidada para ser uma apresentadora virtual dos vídeos do canal oficial do Eurovision. Como a edição de 2020 foi cancelada, ela entrevistou virtualmente os participantes que estavam escalados para a competição, e voltou, em 2021, como apresentadora nos shows ao vivo. Em seu canal no YouTube, ela contou ter sido uma honra dividir o palco com apresentadores mais conhecidos do público holandês e também poder ser a primeira apresentadora transgênero na história do festival.

Além dela, o público também saiu vitorioso do 65º Eurovision, pois foi permitida a participação de 3,5 mil pessoas na arena de shows. Todos testados ou vacinados, claro. Além dos que presenciaram as performances ao vivo, os 183 milhões de espectadores que assistiram aos shows pela televisão ou, como eu, pela internet, puderam conhecer um pouco mais sobre a Holanda, os países participantes e as incríveis histórias que foram contadas em Roterdã. Como manda a tradição eurovisiva, que diz que o país vencedor sempre deve sediar no ano seguinte, nos vemos na Itália, em 2022.

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Arthur Mezacasa
Caderno 2

Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul