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Para que não se repita

Após 10 anos, minissérie da Netflix “Todo Dia a Mesma Noite” remonta a tragédia na Boate Kiss e pais não aprovam o uso comercial da história

Rafaellabrina
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6 min readFeb 15, 2023

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O Rio Grande do Sul parou quando foi constatada a morte de 242 pessoas em um incêndio, no centro de Santa Maria. Naquela noite, um grupo de universitários promovia uma festa chamada “Agromerados” e a atração principal era a banda Gurizada Fandangueira.

Foto: Edu Andrade/ Latin Content

Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, a boate Kiss, localizada na rua dos Andradas, n.º 1925, pegou fogo por causa do uso de um sinalizador. O contato das chamas com o material de espuma, que revestia o teto da casa de festa, liberou uma fumaça tóxica de poliuretano, fazendo com que as pessoas que não morreram queimadas, morressem por asfixia mecânica. Cerca de 90% delas tinha entre 18 e 30 anos.

Os corpos dos jovens foram transportados em dois caminhões até o Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Lá, os familiares realizaram o reconhecimento das vítimas e viveram um dos momentos mais difíceis de suas vidas. Outras 647 pessoas ficaram feridas e carregam até hoje as marcas das chamas, da intoxicação e da violência sofrida pelo caos e desespero da situação.

Em 2021, as famílias ainda tiveram que lidar com o julgamento dos responsáveis. Muitos pais munidos de sede de justiça e luto acompanharam passo a passo do processo. A investigação feita pela Polícia Civil de Santa Maria apontou diversas irregularidades no estabelecimento e havia desconfiança de má conduta, inclusive, do poder público do município.

Foto: reprodução/ Agência Brasil

Em 10 de dezembro de 2021, Os sócios da boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão foram condenados entre 18 e 22 anos de prisão. Entretanto, em 2022, o julgamento foi anulado pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, após um recurso realizado pelo advogado de defesa. Não há data para novo julgamento.

A comoção pela tragédia e a necessidade de justiça foi a mola propulsora para a criação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria. O grupo prestava assistência à famílias que necessitavam de auxílio psicológico, financeiro e informativo. Quatro representantes do grupo e pais de vítimas fatais também foram julgados por calúnia a servidores públicos.

Somente quem viveu vai saber o tamanho da dor de uma perda por uma tragédia, que até hoje permanece impune.

Esse é um resumo de uma tragédia digna de filme, ou melhor, série. Somente quem viveu vai saber o tamanho da dor de uma perda por uma tragédia, que até hoje permanece impune. Essa história é retratada detalhadamente no livro da jornalista Daniela Arbex, Todo Dia a Mesma Noite. Ela traduz ao leitor essa investigação, o processo de julgamento e o descaso do poder público com os pais das vítimas.

Foto: reprodução/Netflix

Em 2023, a tragédia ganhou espaço no mundo audiovisual e uma série foi feita para contar a história por completa. Para que não deixe dúvidas de que 242 não é um número qualquer, foram vidas de filhos, netos, sobrinhos, pais que foram ceifadas naquele 27 de Janeiro.

Todo dia a Mesma Noite — A série

Foto: Divulgação/Netflix

As cenas em que os jovens tentam deixar a boate e não conseguem é extremamente impactante e faz com que cada telespectador perca um pouquinho de si junto.

Baseada no livro de Daniela Arbex, a Netflix lançou em 25 de janeiro de 2023 a série Todo Dia a Mesma Noite, que retrata o que aconteceu naquela madrugada, na Boate Kiss. O que chama a atenção, é que o material se trata de uma dramatização e não de um documentário. A ideia aqui foi contar a história desta noite que não termina pela perspectiva dos sobreviventes, existente no livro da jornalista, de uma forma melancólica.

A narrativa de cinco episódios conta o antes, o durante e o depois tragédia através de quatro grupos familiares, que se unem por uma dor em comum. Eles representam os pais que posteriormente foram a julgados por caluniar e difamar promotores que supostamente autorizaram o funcionamento do estabelecimento. Thelmo Fernandes, Leonardo Medeiros, Paulo Gorgulho e Bianca Byington interpretam os personagens principais da série, cuja as vidas foram destroçadas pelas perdas dos filhos. Através deles, é ilustrada a sede de justiça ao longo do processo judicial de quase 10 anos para a condenação dos culpados, que até hoje ainda não foi finalizado.

Foto: Divulgação/ Netflix

O primeiro episódio recria aqueles que seriam os momentos finais entre os jovens e seus pais, antes da ida para a boate. Além disso, ilustra a luta dos jovens pela sobrevivência. Nos demais, a dor dos familiares pela perda e injustiça tomam o foco principal.

Ao dar rosto as vítimas, a série humanizou a história que foi contada pela imprensa de uma forma factual e informativa. As cenas em que os jovens tentam deixar a boate e não conseguem é extremamente impactante e faz com que cada telespectador perca um pouquinho de si junto.

Foto: Divulgação/Netflix

Segundo a diretora Julia Rezende, o objetivo da minissérie é “não deixar que história seja esquecida”, de forma que também evite outras tragédias do mesmo tipo.

O que falam as redes?

Palavras como “desespero”, “angústia” e “tristeza” estão entre as mais associadas à série na internet, principalmente no Twitter.

Nas redes sociais, foi possível identificar a comoção do público, principalmente dos mais jovens, que não acompanharam o caso e que frequentam casas de festas lotadas também.

Imagem: reprodução/redes sociais

Palavras como “desespero”, “angústia” e “tristeza” estão entre as mais associadas à série na internet, principalmente no Twitter.

Além disso, alguns gaúchos ficaram incomodados com o sotaque forçado de alguns personagens. Entretanto, o agravante é a mistura dos sotaques de diferentes regiões do Rio Grande do Sul. Alguns atores acabaram por generalizar o sotaque, o que deixou certos costumes linguísticos da localidade um pouco exagerados.

Grupo de pais vai processar a Netflix

Segundo a GZH, famílias das vítimas do incêndio pretendem processar a Netflix por causa da série. O motivo seria a exploração da tragédia para uso comercial.

Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão”, disse um dos pais das vítimas ao jornal. O grupo contratou uma advogada, que demanda que os lucros obtidos com a produção seja destinada às vítimas, aos sobreviventes e à construção de um memorial.

O processo contra a Netflix não é movido por integrantes da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria. Inclusive, a entidade divulgou uma nota afirmando que eles sabiam da produção e que a série “não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados”.

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Rafaellabrina
Caderno 2

20 anos| Estudante de Jornalismo (UFRGS)| Porto Alegre, RS.