Literatura

Quando setembro vier

Pedro Pereira
Caderno 2

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A obra de Caio Fernando Abreu é a flor que rompe os escombros e afugenta o mofo

Reprodução: GaúchaZH
Reprodução: GaúchaZH

A casa onde Caio Fernando Abreu passou seus últimos anos de vida em Porto Alegre foi demolida no final da tarde do dia 18 de julho de 2022. O maquinário pesado tinha pressa e antecipado destruía a residência ainda não tombada como patrimônio histórico. Havia um ato marcado para o dia seguinte. Clima de luto. Caio morreu mais uma vez.

Conheci Caio Fernando Abreu no ensino médio. A escola promovia uma mostra de curtas realizada pelos alunos. Não conheci Caio pelas aulas de literatura, através dos livros didáticos. Conheci Caio porque algum aluno que o conhecera antes de mim escolheu por fazer de seu curta-metragem uma adaptação de um conto do autor: “O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO”. Dentre todos os curtas exibidos na mostra, não havia produção mais excêntrica. Tão excêntrica que era impossível conter a vontade de buscar entender da onde viera aquele delírio materializado em tela.

O conto se encontrava em uma coletânea intitulada “Morangos Mofados”, para muitos, a maior obra do autor. Não pude me conter, devorei os morangos. Morangos esses de fato mofados, há algum tempo já, escondidos de muitos, percebidos por alguns, permaneceram. Permaneceram para que eu os pudesse devorar, e mexiam com algo em mim — mais tarde descobri ser meu inconsciente — , que não havia como ignora-los. Nunca antes um livro havia deixado aquele jovem estudante do ensino médio tão intrigado, apaixonado, assustado, hipnotizado. Não parecia verdade. Ao ler a coletânea, o que tentavam esconder de mim e de todos estava ali, bruto e cru para que fosse devorado.

Aos poucos, fui descobrindo quem era esse autor que tanto mexia com algo em mim. Gaúcho, nascido no interior do estado. Um susto de abrir sorriso no rosto. Liamos sobre muitos autores gaúchos na escola, mas não sobre Caio. De todos os gaúchos, porém, Caio era o que mais me alcançava. Caio foi embora do estado para trabalhar nos jornais do sudeste. E lá, por um tempo, ficou. Perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) durante a Ditadura empresarial-militar, refugiou-se primeiro no sítio da escritora Hilda Hilst e, em seguida, na Europa. Além de excêntrica, para justificar a perseguição sofrida pelo autor, a obra de Caio era subversiva. Carregados de subjetividade e irreverencia, os textos do autor iluminavam e seguem iluminando o que a sociedade tenta esconder. Os contos e romances de Caio Fernando Abreu são pouco filtrados. Excêntricos, subversivos, carnosos, nus e crus. Através da literatura, Caio tenta chegar no “It” que Clarice Lispector também buscava. Há muito de Clarice, essa já mais conhecida, em Caio.

Caio Fernando Abreu foi meu primeiro contato com uma literatura que pauta relações afetivas e sexuais para além das normatizadas. Os marginais da sociedade brasileira tem espaço nas obras de Caio. Mas ao contrário de muitos autores, Caio F. falava de populações marginalizadas de dentro de uma. Em seu conto “SARGENTO GARCIA”, Caio expõe relações entre desejo, hierarquia e contradição. Masculinidade e doçura, brutalidade e afeto, nojo e vitalidade são temáticas recorrentes na obra do autor. “O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO” é um exemplo de tantos de sua obra que se aproxima também da juventude, permeada pela contracultura, em busca de escapes em meio a um cenário tão repressivo.

A obra de Caio é excêntrica, subjetiva, carnosa, nua, crua e revolucionária pois através do rompimento com as normas, sejam elas sociais ou gramaticais, escancara tudo aquilo que moralistas e conservadores tentam soterrar, esconder, matar. Mas nosso inconsciente, de um jeito ou de outro, encontra uma forma te trazer tudo isso a tona, mesmo que mofado ou há muito abandonado pelo tempo. Processos não encerrados, mal resolvidos ou não superados tendem a retornar. Mesmo os relatos literários do autor sobre o cotidiano são regados de invasão do inconsciente.

A obra de Caio é vista por muitos leitores como carregada de um certo ar melancólico, pessimista. Mas a utopia também está lá, para quem quiser. Há esperança, e os escritos de Caio trazem um pouco de flor rompendo o asfalto. Flor essa que rompe o que impede a luz de atravessa-la, e mesmo nas condições menos propicias, germina e floresce. A flor não deveria crescer sufocada pelo concreto. Lugar de flor é em campo de luz, brisa e calma. A flor desabrocha APESAR do asfalto. O lugar de Caio Fernando Abreu é nos Campos Elísios. O lugar de Caio segue sendo tomado dele, então é preciso que floresça APESAR do apagamento constante de sua importância e história. Caio morreu pela primeira vez em 1996 em decorrência da AIDS, ainda jovem. Desde então, Caio segue sendo assassinado. A tentativa de esconder, ofuscar, destruir seu legado é constante.

Caio passou os últimos dias de sua vida em uma residência no Menino Deus, em Porto Alegre, e pôde contagiar residentes do bairro e da cidade com sua poesia inerente, hipnotizante. A casa foi destroçada. Ao invés de um centro cultural responsável pela preservação da memória do autor, o local provavelmente dará espaço há mais um ambiente privatizado em uma cidade cada vez mais acometida pelo fenômeno da gentrificação, soterrando e escondendo a história que grita.

Se você ainda não leu Caio Fernando Abreu, comece por “Morangos Mofados”. Devore os morangos e adentre o buraco. Escave, revire, traga a luz ao que está lá escondido. Plante em outros a semente. De primavera em primavera, é preciso manter viva a memória APESAR do abandono. E quem sabe, quando setembro vier, e de tão azul o céu parecer pintado, Caio receberá seu merecido lugar de destaque no imaginário de uma cidade, estado e nação.

Caio Fernando Abreu em frente a sua casa no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Reprodução: GaúchaZH

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