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Rota 66: A investigação que gerou o livro, o livro que gerou a série

A obra é um lembrete que mesmo 40 anos depois das investigações de Caco Barcellos em relação a violência policial, ela ainda é atual e uma dura realidade

Sophia Goulart
Caderno 2
Published in
5 min readOct 20, 2022

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Rota 66: A História da Polícia que Mata, livro escrito pelo jornalista Caco Barcellos, é resultado direto de uma série de investigações realizadas por ele — entre 1985 e 1992 — sobre as execuções promovidas pela Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), tropa de elite da polícia militar de São Paulo, criada em 1970, durante a ditadura militar, para combater guerrilhas urbanas. O caso conhecido como “O Caso Rota 66” foi o estopim para Caco Barcellos começar sua investigação.

No dia 23 de abril de 1975, três jovens — Francisco Nogueira Noronha (17), José Augusto Diniz Junqueira (19) e Carlos Ignácio Rodrigues Medeiros (22)— , foram avistados pela patrulha 13 da Rota, no bairro Jardins, zona nobre de São Paulo, em suposta atividade criminosa. Eles estavam tentando furtar o toca-fitas do carro de Roberto de Carvalho Veras (22), que era conhecido dos jovens, pois também frequentava o Club Athletico Paulistano. Para os três, tudo era uma brincadeira, mas ao perceberem a polícia, entraram no fusca azul de Francisco, dando início a uma intensa perseguição. A Rota 13 perdeu o fusca de vista, mas a Rota 66 os encontrou, e com submetralhadoras alvejou o automóvel, que pensavam ter sido roubado. Os cinco policiais da guarnição da Rota 66 foram inocentados em 1981, mesmo após a perícia ter apresentado diversos laudos apontando que não houve nenhuma troca de tiros, como os policiais haviam alegado.

Como o caso relatado acima envolvia jovens ricos e brancos, apesar da futura absolvição dos envolvidos, ele foi muito noticiado, e a mãe de um dos rapazes lutou por anos pela inocência do seu filho. Caco Barcellos sabia que algo estava errado e, ao investigar esse caso, se deparou com inúmeros outros extremamente parecidos. A maioria eram jovens negros, pobres e da periféria, que, de acordo com a polícia, estavam armados, fugindo ou haviam atirado primeiro. Caco chegou a identificar 4.200 mortes ocorridas entre a década de 70 e a publicação de seu livro. Constatou que 2.200 vítimas eram inocentes, o que representava mais de 60% das mortes investigadas por ele. A Rota 66 era a patrulha com o maior número de execuções, e o jornalista chegou a traçar uma lista dos 10 maiores matadores.

Não é surpresa dizer que após a publicação de seu livro, onde narra toda essa investigação e da nome aos “bois”, Caco foi alvo de ameaças. Mesmo assim, não se intimidou. Sua obra foi um marco para o jornalismo brasileiro, ganhou o Prêmio Jabuti (1993) e, agora em 2022, serviu de inspiração para a série homônima do Globoplay: Rota 66: A Polícia que Mata.

Eu só não desisti diante daquele susto porque eu sofro com a injustiça que envolve uma pessoa alheia à minha história. Pensei várias vezes em abandonar (a investigação) para sofrer menos, mas imediatamente isso se transformava em combustível para continuar — Caco Barcellos sobre a escrita do livro

A série foi lançada em 22 de setembro e é composta por oito episódios de aproximadamente uma hora cada. Ela não tem qualquer intuito de ser literal ao livro e, em sua abertura, deixa claro que é uma obra “inspirada em casos reais narrados na obra de Caco Barcellos”. Os personagens, apesar de serem inspirados em pessoas reais, também tiveram seus nomes alterados. O primeiro episódio apresenta de imediato o caso do fusca azul, e ali já dá o tom da série.

Caco Barcellos, gaúcho, era um recém chegado na cidade de São Paulo quando começou a investigar os casos da Rota. A vida pessoal do jornalista não é abordada no livro, mas foi retratada na série. Lara Tremouroux interpreta Lulli, namorada de Caco, que viria a ser sua futura esposa. A relação dele com seu filho e sua ex-esposa também é narrada, principalmente para mostrar ao telespectador como, em inúmeros momentos, Caco precisou abrir mão de sua vida pessoal para trabalhar em sua investigação.

Humberto Carrão ao lado de Caco Barcellos (Foto: Reprodução/Instagram)

Humberto Carrão está brilhante no papel principal, e criou com êxito um jornalista tímido, introspectivo, mas que tem muita coragem de ir a fundo para descobrir a verdade — e mesmo com medo não desiste desse caminho. O elenco ainda conta com nomes como: Ailton Graça, Wesley Guimarães, Rômulo Braga, Juan Queiroz, Nizo Neto, Naruna Costa, Adriano Garib e Lara Tremouroux — que também estão brilhantes em seus papéis centrais da trama.

Acho importante exaltar também a presença de um personagem na série: Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo e criador da Comissão Brasileira de Justiça e Paz de São Paulo — órgão responsável pela defesa dos direitos humanos, inicialmente na luta contra a tortura e os assassinatos de presos políticos. Dom Paulo e o pastor presbiteriano Jaime Wright, coordenaram, de maneira clandestina, o projeto “Brasil: Nunca Mais”, que tinha como objetivo evitar, durante o processo de redemocratização do Brasil, o desaparecimento de documentos que comprovavam as milhares de violações dos direitos humanos durante o período ditatorial. Assim como as investigações realizadas por Caco Barcellos, o projeto “Brasil: Nunca Mais” também se tornou um livro posteriormente, em 1985.

Os casos narrados ao longo dos oito episódios podem parecer “fantasiosos” demais para algumas pessoas, mas — apesar de não serem exatamente iguais aos narrados no livro, até por respeito a memória das vítimas — foram inspirados por histórias reais e retratam situações presentes na realidade de milhares de brasileiros até os dias de hoje.

O último episódio da série ainda narra, de forma rápida, um caso de violência policial muito conhecido pelos brasileiros: o Massacre do Carandiru. Em 2 de outubro de 1992, na Casa de Detenção de São Paulo, presos iniciaram uma rebelião no pavilhão 9. A Polícia Militar de São Paulo foi acionada para acalmar os ânimos, mas o que realmente aconteceu foi uma chacina que causou a morte de 111 detentos, a maioria dentro de suas celas, sem chance de defesa. Ao final do episódio é anunciado que nenhum dos policiais condenados pelo massacre do carandiru foi preso.

A série é um soco no estômago, pois falar de violência policial não é fácil e, para várias pessoas, é um trauma, mas ela se torna extremamente importante. Serve para lembrar que, mesmo após 40 décadas das investigações de Caco, a relação do Brasil com a violência policial não está muito diferente da apresentada entre os anos 80 e 90. Jovens ainda são mortos pela polícia que deveria defendê-los. Mães ainda choram e lutam por justiça. Jornalistas ainda são intimidados ao exercerem seu trabalho investigando esses casos.

A violência policial é sistemática e não aparenta ter um fim. Dessa forma, um trabalho de investigação como o de Caco Barcellos segue sendo extremamente necessário para ir a fundo no problema. E o livro, assim como a série, são essenciais para conhecer o nosso passado e lutar no nosso futuro.

Cada violação aos direitos à vida, sofrida num canto qualquer da terra, é sentida em todos os pontos do planeta. — Homero Gama, interpretado por Ailton Graça.

A série está disponível para os assinantes do Globoplay.

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Sophia Goulart
Caderno 2

Estudante de Jornalismo em Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).