Séries

The Bear, 3ª temporada: as sobras de Carmy Berzatto

Lançada nos Estados Unidos através da plataforma de streaming Hulu em 26 de junho, a terceira temporada de “O Urso” chega ao Brasil somente em 17 de julho no Disney+

Júlia Cristofoli Campos
Caderno 2
Published in
9 min readJul 5, 2024

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Se existe uma palavra que possa descrever a atmosfera caótica que envolve o restaurante “The Bear” é pressão. É o estresse e, por vezes, desespero que se destacam na cozinha desde o primeiro episódio da série que, lançada em 2022, retrata a jornada do chef de culinária Carmen “Carmy” Berzatto (Jeremy Allen White) em transformar a lanchonete de sanduíches do seu falecido irmão – anteriormente denominada The Beef – em um restaurante renomado. Embora a segunda temporada siga a narrativa linear deste percurso, levando a cada um dos funcionários a desenvolverem suas capacidades cada vez mais para elevar o status do estabelecimento, a terceira parte interrompe essa sequência.

Jeremy Allen White como Carmen “Carmy” Berzatto na terceira temporada de The Bear | Reprodução: FX

Após ficar preso na geladeira do “The Bear” em sua noite de inauguração, Carmy tem um ataque de pânico e revela o pior de si, ofendendo os seus colegas de equipe e, acidentalmente, revelando à Claire (Molly Gordon), sua namorada, que considerava seu relacionamento uma decisão precipitada. É a partir deste ponto que a narrativa recomeça, mas não mergulha nas ações e percalços dos demais personagens de cara: no lugar, somos convidados ao espaço mental de Berzatto, explorando seu passado enquanto aprendiz.

Em meio a lembranças traumáticas e ternas, o primeiro episódio é lento, guiado por flashbacks com pouco diálogo. Ele não nos revela nada que já não saibamos e não nos prepara para o que está por vir nos episódios seguintes: a mudança completa de postura de Carmy enquanto líder. Ao não apenas optar por impor uma lista de afazeres não-negociáveis sem consultar sua equipe, ele também inclui em um destes tópicos que o menu deve ser atualizado diariamente sem nem ao menos avisar Sydney (Ayo Edebiri), também responsável pela criação do cardápio, sobre esse fato.

Essa é apenas uma das inúmeras semelhanças que Carmy adquire com aquele que mais odeia. “The Bear” segue retratando com excelência como traumas generacionais e um ambiente abusivo de trabalho moldam o comportamento humano. Nesta altura, a raiva reprimida que Carmy parece sentir de si mesmo é convertida em obsessão por controle. Suas imposições tornam a sua presença no local uma fonte de estresse não só para ele mesmo, como para todos. Esta percepção nos leva a ponderar que, talvez, eles estariam melhores sem ele. Afinal, com exceção dele, todos são capazes de executar suas tarefas sem xingamentos e gritos impacientes. Todos, menos Carmy, entregam tudo que podem, da melhor forma que conseguem. Já o chef prefere entregar o pouco que resta das suas sobras.

Carmen parece saber que pode e deve tratá-los melhor. Percebemos isso em confissões sussurradas e amargas, como quando ele admite a Sydney que “não gostaria de ser difícil de acompanhar”. Este é o mais próximo de um pedido de desculpas que vemos – o qual ele deve não somente aos seus colegas de trabalho como também à Claire.

Em meio a tentativas não sucedidas de convencer o chef e até mesmo a própria ex-parceira a conversarem, os irmãos Fak (Matty Matheson e Ricky Staffieri) buscam trazer de volta ao cozinheiro – e, consequentemente, à cozinha – sua paz. Afinal, como o próprio Carmy descreve, Claire é como “a paz encarnada”. Ela e o relacionamento de ambos funcionavam como uma válvula de escape para toda a angústia que carrega. Ainda assim, o telespectador sabe, tal como Claire, que este passo não pode ser dado a ninguém mais além do protagonista. Essa realização amarga nos força a refletir sobre o quão nociva está se tornando a autossabotagem de Carmy.

Apesar de ter tido tímidas evoluções de relacionamento com seu tio Jimmy (Oliver Platt), que não está lucrando com o restaurante e que talvez precise revogar seu empréstimo, e sua irmã Natalie (Abby Elliott), é principalmente com Syd e Richie (Ebon Moss-Bachrach), seu primo, com quem a relação de Carmy entra em declínio.

Ayo Edebiri como Sydney “Syd” Adamu na terceira temporada de The Bear | Reprodução: FX

Ao passo que a personagem de Edibiri é cada vez mais posta à sombra do renomado chef, ela parece questionar cada vez mais seu lugar no restaurante. Uma proposta de emprego em outro lugar a põe em dúvida sobre qual seria o melhor passo a ser tomado: valeria a pena trocar o ambiente pela qual lutou tanto para melhorar, cujas pessoas contam com ela, por um em que a permitisse receber o reconhecimento que busca e merece?

Embora a complexidade de Syd seja retratada de maneira mais aprofundada, a personagem de Ayo não possui tempo de tela o suficiente para explorar isso. Na verdade, este é um dos aspectos que afeta muitos dos coadjuvantes. Marcus (Lionel Boyce), por exemplo, está enfrentando o luto por sua mãe de uma maneira bonita e quase poética. Ao confessar em seu velório que a comunicação entre ambos melhorou quando deixaram de falar, ou até mesmo ao encantar-se por uma violeta que cresce sozinha em um muro – talvez uma metáfora para ele mesmo –, ele é o extremo oposto do seu chefe. Sensível, expressivo e empático, ele pede perdão a Sydney por ter “deixado as coisas estranhas” entre ambos ao tê-la chamado para sair na temporada passada. Isso demonstra o quão opostos são o confeiteiro e Berzatto, porque ao menos um deles não parece sentir às vésperas de um infarto ao pedir desculpas.

Além de Marcus, Richie, primo de Carmy e antigo melhor amigo de Michael Berzatto – cujo suicídio o trouxe choque e culpa –, também não é tão bem desenvolvido quanto na temporada anterior. A esta altura, suas preocupações estão centradas na necessidade de sua presença na cerimônia de casamento da sua ex-esposa. Embora a relação de ambos seja amigável, é compreensível que Richie sinta-se desconfortável em aceitar este convite. Esse incômodo parece crescer à medida em que Frank (Josh Hartnett) se desculpa por não ter conversado com Richie antes do pedido de casamento.

Ebon Moss-Bachrach como Richard “Richie” Jerimovich na terceira temporada de The Bear | Reprodução: FX

A gentileza do padrasto de sua filha, Eva (Annabelle Toomey), leva Richie a pensar que talvez ela estaria melhor sem ele. É claro que não: quem mais a levaria no show da Taylor Swift e colocaria cem velas no seu bolo de aniversário? De qualquer modo, ele não parece perceber a importância que representa na vida de Eva, e nenhum espaço é criado para que isso se desenvolva.

Os pontos altos na temporada, no entanto, não são protagonizados por Jeremy, Ayo e Ebon. Na verdade, são os episódios 6 “Napkins” e 8 “Ice Chips” (“Guardanapos” e “Batatas Congeladas”, respectivamente, em tradução livre), que resgatam aquilo que The Bear faz de melhor: abordar a complexidade dos anseios, medos e decepções dos seus personagens. “Napkins”, sob a direção brilhante de Ayo Edibiri, é ambientado no passado. Nele, acompanhamos a busca incansável de Tina (Liza Colón-Zayas) por um emprego. Embora seu marido acredite que vá conseguir sua tão sonhada promoção e peça para que ela não se preocupe, Tina não se convence. Sua aflição é intensificada, também, devido ao aumento de seu aluguel.

Liza Colón-Zayas como Tina Marrero na terceira temporada de The Bear | Reprodução: FX

Desta forma, após duas semanas de tentativas frustradas entregando seu currículo – e a frase “posso deixar meu currículo?” definitivamente irá se tornar uma das mais marcantes na série –, ela decide entrar na lanchonete “The Beef” para pedir um café. Tudo que buscava ao adentrar o lugar era sentar-se no lugar mais privado possível para que pudesse chorar com tranquilidade – e é o que ela faz, até certo ponto, uma vez que seu choro ganha a trilha sonora das brincadeiras audíveis de Richie, Mikey e Neil. Ao perceberem que uma cliente está chorando, Mikey é incumbido da missão de abordá-la para que, nas palavras de Richie, “ela não afugente os clientes”.

Neste momento, somos apresentados a uma faceta de Michael Berzatto que não vimos com tanta frequência: seu lado gentil e carismático quebra os muros de Tina quando ele enumera uma lista de insatisfações pessoais. O que eles têm em comum? Ambos não lembram a última vez que foram pra cama. É claro que essa é a menor das preocupações no momento, mas este fato compartilhado dissipa, aos poucos, a tensão da conversa. Por conseguinte, temos uma confissão reveladora da parte de Mikey, que até então nunca havia se mostrado tão clara: ele demonstra que admira e até mesmo inveja seu irmão mais novo por não só sempre ter certeza do que queria fazer, mas também por fazê-lo de maneira notável.

“Esse lugar é uma merda. Mas, eu juro, tem dias que é tão divertido.” (Mikey para Tina, episódio 6, The Bear).

Logo, Tina percebe a revelação implícita de Michael: ele não tem certeza se está fazendo o que realmente quer. Assim, ela o questiona se não gostava do trabalho. A resposta é simples: “eu gosto das pessoas”. E isso parece mais que o suficiente. Essa frase é relembrada no último episódio da série pela chef Terry, que diz que os clientes não se lembram da comida, mas sim das pessoas.

O oitavo episódio, similarmente, também aborda um nascimento — embora, desta vez, seja no sentido literal e não o início de um novo emprego, que Tina conquista no fim de sua conversa com Mikey. Desta vez, o foco é Natalie, em trabalho de parto, acompanhada por quem ela menos queria ver em um momento tão sensível: sua mãe. Donna Berzatto (Jamie Lee Curtis) permanece controladora e impositiva, ainda que, desta vez, essas características adquiram um quê de ternura e gratidão por estar ao lado da filha neste momento.

Neste cenário, ambas se reconectam, pelo menos por um momento, de uma maneira linda, vulnerável e real. Após contar à filha sobre cada um de seus partos e confidenciar que, ao contrário dos irmãos, Natalie teve um parto fácil e terapêutico, Donna canta, olhando nos olhos de Sugar, “Baby, I love you” (amor, eu te amo) de The Ronettes – a música que ouviu enquanto a trazia ao mundo. Essas palavras pesam no ar e no peito do telespectador, que se sente tão aliviado e, na mesma medida, melancólico quanto ambas.

Jamie Lee Curtis como Donna e Abby Elliott como Natalie Berzatto na terceira temporada de The Bear | Reprodução: FX/Hulu

Além disso, Natalie admite que não queria a presença da mãe por conta de tudo que ela traz consigo. Em determinado momento, Sugar comenta sobre sua busca patológica por nutrir as necessidades alheias, muitas vezes em detrimento próprio. Este fato era algo implícito, mas claro ao público. Ainda assim, esta verdade nunca havia sido dita em voz alta. Parece reconfortante para Natalie admitir que as coisas não deveriam ser assim, e perceber que sua mãe também parece ter tido uma infância difícil – uma vez que a senhora Berzatto fala que Claire não gostaria de lembrar de sua avó, o que explica muito sobre o comportamento de Donna.

“Eu sinto que todos estão bravos comigo o tempo todo. Eu pergunto até demais às pessoas se elas estão bem. se alguém se sente doente, eu também me sinto. me sinto sozinha ou feia ou como se eu estivesse encrencada.” Natalie para Donna, episódio 8 (The Bear).

De qualquer forma, esse momento íntimo entre mãe e filha não parece ser o suficiente para reparar o dano causado em ambas – o que, claro, é compreensível. Donna se apressa para fugir da sala assim que o marido da filha, Pete (Chris Witaske), chega. Ela chora, imersa em sua própria angústia, do lado de fora. Sua única recomendação ao genro antes de ir embora é que ele fique ao lado de Sugar. Evidentemente, este conselho excede as paredes do hospital.

Assim, com os momentos mais concisos e emocionantes da série pertencentes aos coadjuvantes e não ao protagonista, é difícil não se preocupar com a direção que “The Bear” está seguindo. Carmy traz mais frustração do que simpatia a quem assiste, e as inúmeras questões em aberto despertam esperança de que, quem sabe na próxima temporada – já confirmada –, ele e os demais personagens terão a devida atenção e desenvolvimento. Aspectos como cinematografia, atuação e trilha sonora permanecem extraordinários – resta saber se o roteiro e a direção também retornarão a esse patamar.

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