Música

Titanic no Guaíba: na ausência do corpo físico, os espectros rondam a cidade

‘Titanic Rising’ de Weyes Blood revisitado na capital gaúcha

Pedro Pereira
Caderno 2
Published in
4 min readJan 26, 2023

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Ensaio fotográfico de Weyes Blood para a capa do disco Titanic Rising | Reprodução: NPR

“Cinema é a arte dos fantasmas, uma batalha de espectros, é a arte de deixar os fantasmas voltarem” — Jacques Derrida

A palavra Fantologia é introduzida por Jacques Derrida em 1993, quando o filósofo francês busca repensar certas concepções básicas da filosofia ocidental. Em síntese, o conceito refere-se ao retorno, ou persistência, de elementos do passado na forma de espectros. O primeiro disco de estúdio da cantora Natalie Mering, também conhecida pelo nome artístico de Weyes Blood, é, de certa forma, um exercício de Fantologia. Intitulado “Titanic Rising”, ele evoca em seu nome algo como o retorno do velho navio à superfície — ou mesmo a ascensão dos oceanos provocada pelas mudanças climáticas, nos levando até ele. O álbum carrega em sua ambientação melancólica inúmeras dúvidas e aflições circundantes dos tempos atuais, afligindo a todos, mas, principalmente, às novas gerações.

“Titanic Rising” foi lançado em abril de 2019, mas foi especialmente ouvido durante o isolamento devido a pandemia de Covid-19, iniciado em 2020. Na faixa que abre o disco, “A lot’s gonna change”, Mering escreve sobre nascer em um século de memórias perdidas, onde as coisas já não são tão simples como um dia puderam ter parecido, e os futuros, imprevisíveis, estão cada vez mais distantes e impossíveis. Em “Andromeda”, a busca pelo inimaginável tenta se materializar na forma de um amor distante. Tenta. Mesmo buscando romper as fronteiras da imaginação permitidas pelo momento atual, a distância sideral entre galáxias é ainda obscura e dotada de uma certa penumbra espectral. “Everyday” aproxima a possibilidade de amor, buscando descrever sentimentos relativos às atuais dinâmicas de relação, incluindo aplicativos e pressões sociais que os circulam. Para além disso, busca também entender como se configuram a carência e a necessidade na contemporaneidade, e que nova face o amor toma com isso. “Something to believe” é sobre a morte de Deus. A necessidade aqui é por acreditar em algo que de sentido à vida em meio ao esvaziamento da modernidade. Nessa faixa, Mering canta que precisa acreditar em algo maior e mais barulhento do que as vozes de sua cabeça.

Na faixa “Wild Time” Mering tenta imprimir de maneira mais explícita a experiência de se viver no presente século. A cantora nos convida a observar o redor, percebendo que não sobrou nada possível de ser mantido. É preciso deixar que essas mudanças nos atravessem, é preciso lidar com elas. Quanto mais tempo passarmos fugindo de resoluções urgentes, mais espectros seguiram rondando nosso tempo sem corpo físico para habitar. O susto continuará, o fantasma sem corpo assusta. E a cada tentativa de expurgar o espectro, com mais força ele será invocado. A última faixa do disco, “Nearer to Thee”, faz referência a última canção tocada no Titanic antes de seu náufrago, “Nearer, ,My God, to Thee”. Referencia, também, em sua sonoridade, à primeira música de “Titanic Rising”, elaborando a dinâmica náufrago e superfície. O espectro e o corpo.

Natalie Mering (Weyes Blood) veste uma peruca loira no clipe de “Movies”.

A estrela do disco, no entanto, é a faixa “Movies”. A composição de Mering busca explorar a própria concepção que a cantora tem sobre as telas de cinema. Histórias distantes da realidade, mas que ao mesmo tempo dialogam profundamente com ela. A potência da tela, a capacidade de dar vida a algo através da narrativa, a tentativa de encontrar um corpo para os espectros que rondam nosso tempo. Para os espectros que rondam Weyes Blood. Para a própria. É preciso trazer esses espectros que nos assombram para o plano material. É preciso, de alguma forma, lidar com eles.

Porto Alegre é uma cidade assombrada, como as capitais num geral são. Nas cidades grandes os espectros que circundam nosso tempo são mais facilmente percebidos, visto que nelas também se encontram mais evidentes as contradições. O período pós pandêmico, em especial, tem tornado ainda mais difícil e ainda mais longínqua a tentativa de encarnar os espectros em corpos materiais. A cidade perde cada vez mais vida ao passo que os fantasmas do “espaço público” e da “esquerda”, sem corpo material, apavoram a civilização desavisada que permite o avanço de um brutal processo de privatização na busca de expurgar esses espíritos. É necessário fazer o processo inverso. Precisamos assumir esses fantasmas. Construir para eles um meio pelo qual consigam existir. O cinema e a música são inícios disso. Resgatemos os naufragados aterrorizantes antes que chegue nossa hora de afundar.

Ouvir “Titanic Rising” três anos após seu lançamento segue sendo muito tocante. Esse álbum, de fato, veio para perdurar e permear o imaginário desses anos e dos próximos. A cada ouvida, em momentos diferentes, novos retalhos podem ser costurados a essa colcha. Dialogando com o indivíduo, com o coletivo, mantendo vivos os sentimentos que precisam de nome para existir. A maestria de Mering como artista completa da luz ao disco e o entrega aos tempos por vir.

Lago Guaíba a noite. Reprodução: Minube

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