A Correlação de Forças do Futebol Brasileiro: ensaio para a elaboração de uma política do futebol brasileiro
por João Paulo S. Medina*
“Tenho em mim todos os sonhos do mundo”
(Fernando Pessoa)
INTRODUÇÃO
O jogo é de futebol, mas bem que poderia ser um jogo de xadrez. Em uma análise atenta sobre o atual cenário do futebol brasileiro, é possível identificar-se duas grandes tendências, apesar de nem sempre muito nítidas. De um lado estão as forças que querem as mudanças conjunturais e estruturais do futebol brasileiro. Do outro, persiste um pensamento que, consciente ou inconscientemente, defende a sua manutenção. Sabemos que, em qualquer área de atuação, existem aqueles que alimentam o “status quo” simplesmente por serem incapazes de enxergar as limitações do cenário atual, e outros que o defendem por interesses dos mais diversos, alguns evidentemente pouco abonadores.
Este ensaio pretende fazer algumas conjecturas, em um ambiente de correlação de forças, entre os “agentes de conservação” que dominam e procuram manter de todas as formas o poder hegemônico no futebol brasileiro e os “agentes de transformação”, que clamam pelas mudanças.
É bom deixar claro que não é nossa intenção estabelecer aqui um confronto maniqueísta entre os que representam as forças do bem contra as do mal, do certo contra o errado ou do retrógrado contra o moderno, mesmo porque, devido à complexidade do contexto e dos interesses, é comum vermos pessoas e instituições que, paradoxalmente, ora defendem teses conservadoras, ora transformadoras. Na verdade, todos nós somos um pouco assim, contraditórios, complexos, com muitas dúvidas e conflitos internos.
E é justamente neste ambiente repleto de paixões, emoções e subjetividades, onde o futebol pode representar tanto um instrumento de alienação em nossa cultura, como uma de suas mais significativas e legítimas manifestações, que não podemos querer encontrar verdades absolutas. Portanto, o que pretendemos nestas reflexões é tão somente esboçar, dialeticamente, um quadro que nos permita entender cenários e enxergar novos caminhos, ou seja, levantar alguns elementos essenciais para a elaboração de uma política que realmente busque o desenvolvimento para o futebol brasileiro.
Entretanto, é inegável que existem hoje no futebol brasileiro forças extremamente conservadoras e reacionárias que insistem na manutenção de um estado de coisas que impede o seu desenvolvimento em um padrão de excelência, ou ao menos aos níveis já alcançados por alguns outros países, e que permite colocar sob suspeita a ideia de que o Brasil possa, por alguma razão, ser considerado o “país do futebol”.
Excetuando-se os fatos de ainda sermos o único país que conseguiu ser cinco vezes campeão mundial e também o único a ter participado de todas as edições das Copas do Mundo, nada mais nos faz concluir que somos os melhores. Nem em público nos estádios, nem nas boas práticas de gestão e governança e nem mesmo naquilo que sempre nos orgulhou, a qualidade técnica de nossos jogadores e equipes.
Neste contexto vamos fazer uma avaliação dos principais atores do futebol brasileiro em seus papéis enquanto agentes de conservação e/ou transformação. Dentro de uma visão mais abrangente que percebe o futebol como um tecido que envolve — mais ou menos — a vida de toda a sociedade, uma reflexão aprofundada e crítica deveria incluir todos os seus agentes: atletas, clubes profissionais, associações e ligas amadoras, dirigentes estatutários, executivos, treinadores e especialistas diversos, CBF, federações estaduais, sindicatos, patrocinadores, mídia especializada, torcedores, telespectadores, Ministério do Esporte, agentes-empresários, empreiteiros, legisladores e tribunais esportivos, universidades, entre outros.
Porém para este estudo especificamente, vamos considerar apenas os 6 “atores” básicos que interferem mais diretamente sobre o grande negócio que se transformou o futebol. A partir da perspectiva do alto rendimento e do espetáculo consideraremos os reflexos na base e massificação desta modalidade esportiva em nosso país, buscando-se, tanto quanto possível, uma visão de conjunto.
Destacaremos os seguintes grandes atores:
1. Jogadores
2. Clubes
3. Rede Globo e empresas patrocinadoras
4. CBF e Federações
5. Mídia especializada
6. Público em geral
1. JOGADORES (profissionais e amadores) — Representam a base primordial do futebol. Sejam eles participantes de uma categoria profissional de elite ou simplesmente praticantes amadores, alegres, descontraídos e apenas comprometidos com o jogo e o prazer da brincadeira e diversão, os atletas são a própria essência desta modalidade esportiva que se tornou um fenômeno social e uma paixão mundial. Historicamente os atletas profissionais no Brasil sempre foram pressionados e levados a conviver em um ambiente que exige posturas conservadoras e, muitas vezes, alienadas.
Alguns poucos atletas se destacaram por se rebelarem contra esta situação. Dois deles, sempre lembrados por suas atitudes contestadoras, são Afonsinho e Sócrates. Temos exemplos de vários outros jogadores contestadores, mas poucos deles no sentido político, ou seja que defendiam publicamente seus posicionamentos em defesa de transformações sociais ou mudanças do “status quo” vigente na sociedade ou no futebol.
Por isso, nunca se conseguiu mobilizar grande quantidade de atletas na luta por seus direitos e, sobretudo, na superação da submissão e alienação prevalentes. Em um ambiente tipicamente opressor, as próprias entidades que representam oficialmente os atletas dividem-se entre conquistas e melhorias pontuais e a total submissão aos poderes dominantes, característica das instituições futebolísticas. Recentemente surgiu um movimento, chamado de Bom Senso F.C., liderado por alguns atletas de elite e que defendem mudanças radicais que beneficiariam não só os jogadores das principais equipes, como também a imensa maioria de cerca de 80% que recebe até três salários mínimos. Trata-se de um fato novo e que merece atenção.
Centenas de atletas firmaram o seu apoio ao movimento, defendendo mudanças em diversos setores estratégicos que atuam no futebol. Seu slogan é “Por um futebol melhor para quem joga, para quem torce, para quem apita, para quem transmite, para quem patrocina. Por um futebol melhor para todos.”.
2. CLUBES — Assim como a família é considerada a “célula máter” da sociedade, dando suporte ao desenvolvimento da criança e do adolescente, o clube pode ser considerada a “célula máter” do futebol, dando identidade e apoio ao desenvolvimento do atleta. O fato de serem favorecidos por uma formatação jurídica na qual são constituídos, cujos dirigentes estatutários não são remunerados, fizeram com que um padrão mais profissional de gestão nunca tenha sido considerado com a devida seriedade no futebol brasileiro.
O que prevalece nestas instituições esportivas, ainda são os desejos, intenções e interesses da presidência, diretoria estatutária e conselheiros que são, de forma geral, mais torcedores do que gestores. Dentro deste quadro cria-se um ambiente onde se acumulam dívidas trabalhistas, tributárias, previdenciárias e bancárias, com antecipações desmedidas de receitas futuras e com propostas as vezes absurdas de negociações que no fundo pretendem apenas adiar os problemas, mas que de fato só os agravam, pois algumas delas são praticamente impagáveis.
Os clubes que tentam se modernizar contratam executivos e profissionais especializados, mas paradoxalmente dão a eles pouco poder decisório. Continuam pagando salários fora da realidade, gastando muito mais do que as receitas permitem, servindo de “vitrine” para atletas (“commodities”) pertencentes a agentes (e parceiros ocultos) que possuem fatias expressivas, quando não a totalidade dos direitos econômicos dos principais jogadores, cenário este que exige urgentemente de uma regulamentação.
No setor técnico, às vezes o treinador tem algum poder, mas que está diretamente relacionado aos resultados imediatos de campo. Quando sua equipe perde alguns jogos, ele igualmente perde o poder e, na sequência, o emprego. Aliás, esta lógica serve também para os projetos e planos de ação que são realizados, geralmente, com foco exclusivo no curto prazo, sem decisões tomadas à partir de um planejamento estratégico consistente da própria instituição.
Este cenário faz com que o clube viva de suas rotinas tradicionais, sem integração entre as suas dimensões políticas, administrativas e técnicas e, consequentemente, com ações que mudam conforme o andamento dos resultados de campo de sua equipe principal. Assim, trabalhos mais profissionais e competentes que incluam diagnósticos dos fatores internos e externos, elaboração e execução de cuidadoso planejamento estratégico, projetos e planos de ação de curto, médio e longo prazos, ações estratégicas, administrativas, técnicas e operacionais, completadas com avaliações e controles rigorosos de desempenho, são apenas reflexões futuristas ou utópicas para a maioria dos clubes brasileiros.
3. REDE GLOBO E EMPRESAS PATROCINADORAS — Em conjunto, dentro do modelo econômico globalizado vigente, constituem-se no grande pilar de sustentação do futebol brasileiro enquanto espetáculo e negócio. Por razões óbvias, o grande interesse das empresas é o lucro. Portanto, cobrar maior participação delas em relação aos problemas de todos os 641 clubes profissionais brasileiros e seus respectivos 18 mil jogadores soaria como ingenuidade. Esta deveria ser uma obrigação e prioridade da CBF e Federações Estaduais, que são instituições sem fins lucrativos.
As empresas com maiores recursos, via de regra, têm interesse nos clubes que podem agregar valor imediato às suas iniciativas de patrocínio. Embora perfeitamente exequível, não há ainda nem visão estratégica, nem condições concretas para que investimentos consistentes e de longo prazo sejam feitos com os clubes menores.
A Rede Globo, especificamente, possui grande poder e influência como formadora de opinião dentro da cultura brasileira e é hoje provedora fundamental de receitas para os principais clubes do país. Estes, devido ao seu próprio modelo constitutivo e de gestão tradicional, se tornaram reféns das próprias receitas dos direitos televisivos. Diante deste quadro distorcido e/ou desequilibrado, todos os outros atores acabam sendo influenciados, tendo que se adaptar conservadoramente a esta realidade.
De forma sistêmica, até mesmo as demais empresas patrocinadoras acabam tendo que se ajustar aos princípios comerciais estabelecidos pela detentora dos direitos de transmissão. Também no afã de “premiar” os clubes com maiores torcidas e consequentemente, que propiciam maiores audiências, estabelece-se uma correlação de forças nefasta em termos competitivos entre as equipes, estimulando práticas menos saudáveis e justas no futebol como um todo.
Alguns analistas afirmam que está em andamento no Brasil um processo de “espanholização” do futebol, onde poucos clubes recebem boa parte dos recursos dos patrocinadores, abrindo distâncias extremamente desiguais entre as equipes em termos de competitividade.
4. CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL (CBF) E FEDERAÇÕES ESTADUAIS — São associações de direito privado, de caráter desportivo, e que dirigem o futebol brasileiro, em nível nacional e estadual, respectivamente. Conforme o seu estatuto — Capítulo I, Art. 5o. — a Confederação Brasileira de Futebol tem como um dos seus fins básicos “administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar, regulamentar e fiscalizar, constantemente e de forma única e exclusiva, a prática de futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional”.
Deve também “colaborar para o funcionamento e desenvolvimento das Federações filiadas e entidades de prática do futebol, proporcionando-lhes assistência técnica e financeira”. Em conjunto, portanto, deveriam ser as principais responsáveis pela implantação e implementação de uma abrangente política para esta modalidade desportiva em nosso país, nas dimensões do alto rendimento, educacional e social. CBF e Federações Estaduais poderiam ser as grandes coordenadoras do processo de desenvolvimento do futebol brasileiro, seguindo o exemplo do que já consegue fazer com sucesso a Uefa em relação aos seus 53 países filiados, e cuja complexidade em nada pode ser considerada menor que administrar o futebol no Brasil.
Entretanto, quer seja por falta de visão, quer seja por interesses particulares ou mesmo escusos, a verdade é que, apesar de nosso inegável potencial, estamos muito distantes de medidas efetivas capazes de resgatar o futebol brasileiro a patamares que permitam almejar a hegemonia do futebol mundial.
Voltando ao estatuto, podemos constatar que o seu Artigo 6o. é bem claro quando diz que: “a CBF não tem objetivos lucrativos, devendo aplicar suas receitas e recurso financeiros na realização de suas finalidades, bem como na organização, na administração, na divulgação e no fomento do futebol.” Basta, enfim, uma análise superficial para perceber que tanto CBF quanto as Federações Estaduais não cumprem as suas próprias finalidades. Pelo contrário, além deste descumprimento, com uma estrutura institucional jurídica que as protegem, seus dirigentes conseguem se eternizar no poder, propiciando pouquíssimas possibilidades para transformações mais democráticas e modernizadoras.
Em um balanço atual, estima-se que a CBF tem um faturamento anual bruto próximo de R$ 350 milhões, com lucro líquido em torno de R$ 75 milhões, o que daria, por si só, para subsidiar grandes mudanças e estruturar toda a pirâmide de sustentação do nosso futebol. Hoje são distribuídos valores e benesses da CBF para as Federações e destas para os clubes, com contrapartidas mais relacionadas e preocupadas com a manutenção da estrutura de poder do que com o desenvolvimento do futebol propriamente dito.
5. MÍDIA ESPECIALIZADA — Na sociedade de consumo do mundo contemporâneo em que vivemos, a imprensa de forma geral tem se destacado não só como meio de comunicação e expressão que reforça, de diversas maneiras, a identidade sociocultural de um povo, como também exerce um papel preponderante — para o bem e para o mal — em diferentes dimensões da esfera pública.
Neste sentido, o jornalismo esportivo brasileiro tem se destacado, em particular através do futebol, enquanto entretenimento, espetáculo e prática social. Apesar desse esporte ser reconhecidamente uma das mais expressivas manifestações da nossa identidade nacional e que possui, além de tudo, um inegável caráter unificador (de uma comunidade ou nacionalidade), este fenômeno pode também ser visto simplesmente como uma mercadoria, e assim ser explorado por diversos segmentos, inclusive pela própria mídia especializada.
Neste ponto, pode-se perceber, de um lado, uma forte tendência ao exercício da modalidade de jornalismo esportivo opinativo, com pouca preocupação realmente informativa e investigativa, que deveria ser a essência do próprio jornalismo, de forma geral. O que se observa, muitas vezes, é tão somente a valorização do processo de espetacularização do evento esportivo e a consequente veiculação das marcas, que não raramente são confundidas com alguns jornalistas, adeptos do merchandising.
Como forma de entretenimento, percebe-se uma tendência onde cada vez se fala menos de futebol e mais de superficialidades. Como nos ensina o sociólogo francês Pierre Bourdieu: “As notícias de variedades consistem nessa espécie elementar, rudimentar, da informação que é muito importante porque interessa a todo mundo sem ter consequências e porque ocupa tempo; tempo que poderia ser empregado para dizer outra coisa. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis é porque as futilidades têm o papel de esconder os assuntos que deveriam ser debatidos. Ora, ao insistir nas variedades, preenchendo esse tempo raro com o vazio, com nada ou quase nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos.”
De outra parte, entretanto, é possível observar um jornalismo esportivo mais crítico, combativo e investigativo, que longe de ser hegemônico — e nos limites de nossa ainda frágil democracia — é, contudo, capaz de fazer contrapontos significativos com esta visão, estabelecendo-se aí uma correlação de forças que, de certa forma, influencia a opinião pública.
6. PÚBLICO EM GERAL — O futebol é um fenômeno sociocultural e esportivo admirado por milhões, praticado por muitos, mas — em especial no Brasil — ainda infelizmente estudado por muito poucos. Por seu significado e expressão simbólica em nossa cultura, tentar entender o envolvimento do público em geral com esta modalidade esportiva é tentar entender a própria sociedade. Embora o futebol tenha historicamente começado há mais de 100 anos em nosso país como uma prática elitista e que só se popularizou definitivamente em meados do século XX, a verdade é que uma de suas características mais marcantes é que atualmente ele é apreciado por grande parte da população em praticamente todas as camadas sociais.
Isto quer dizer que haverá sempre simpatizantes e torcedores de futebol em qualquer nível social e/ou educacional, seja entre os pouco mais de 10% dos brasileiros que conseguem completar um curso superior, seja entre os quase 10% de analfabetos, ou ainda seja entre os cerca de 30% (ou seria 40%?) de nossa população enquadrados como analfabetos funcionais.
É, portanto, natural e perfeitamente compreensível que esta modalidade, apelidada pelos ingleses como “the beautiful game”, reflita todos as injustiças, conflitos e contradições da sociedade como um todo. Não há, portanto, um padrão monolítico de torcedores. No seu conjunto eles podem ser apaixonados, passionais, agressivos, sensíveis, violentos, lógicos, racionais, críticos, solitários, enturmados, festeiros, organizados ou desorganizados. E haverá sempre, em última instância, desde aqueles que se identificam mais com causas conservadoras e reacionárias até aqueles que gostariam de se engajar em causas inovadoras e contemporâneos e que beneficiariam todos que apreciam o futebol bem jogado.
Qualquer plano que pretenda estabelecer uma política séria para o futebol brasileiro deveria conhecer melhor o seu público, que no caso são homens e mulheres, crianças e adolescentes, que torcem, assistem, jogam, participam, ouvem, leem, falam e discutem o futebol.
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Que bom seria para o Brasil se conseguíssemos nos próximos anos reunir todas as forças que querem mudanças conjunturais e estruturais para o nosso país de uma forma geral, e dentro deste contexto, almejassem também mudanças no próprio futebol, através de um plano nacional de desenvolvimento, integrando estas forças no sentido de se valorizar este extraordinário patrimônio da humanidade que tanto significado tem para nós brasileiros!
Afinal, um futebol melhor, dentro de um país melhor, pode significar a contribuição brasileira para um mundo melhor!
Ou isto significaria sonhar o impossível?
“Alguns homens veem as coisas como são, e dizem ‘Por quê?’
Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo ‘Por que não?’”
(George Bernard Shaw)
*João Paulo Medina é Diretor da Universidade do Futebol