Noturno Indiano

Eder Alex
Café Com Traça
Published in
3 min readAug 15, 2015

(Antonio Tabucchi)

A labiríntica narrativa de Antonio Tabucchi é composta por vultos e imprecisões do olhar. Mas não falo da sombra de um espírito que passa rápida logo ao fundo. Trata-se do olhar que vê, mas questiona o que enxerga, duvida da forma oculta na penumbra que insinua contornos malignos quando nos aproximamos. Um sonho que arranha a superfície da realidade e deixa ali algumas lascas de unhas.

Literatura é fingir a verdade por escrito e em “Noturno Indiano” o autor italiano finge escrever um livro de viagens, com direito a um itinerário real que nos é apresentado já de início. O protagonista é um homem que faz uma peregrinação por diversos lugares da Índia em busca não de comer amar rezar, mas sim de seu amigo português, chamado Xavier. Este amigo está desaparecido, sabe-se lá por quê, mas algumas pistas dão conta de que talvez ele tenha passado pelas cidades de Madras, Bombaim e Goa, todas elas contendo a discrepância social do país, tão luxuoso quanto miserável.

Há sempre um tom de pesadelo nas beiradas das páginas, mas é uma escuridão que nunca ganha as páginas e então só podemos imaginá-la. É como abrir um porão, mas não entrar e ficar observando de longe até que uma sombra se movimente. Podemos sentir o relevo da história principal, mas sabemos que há outra camada narrativa sendo contada ali embaixo. Conversas aparentemente desconexas, pessoas muito estranhas, lugares exóticos, crenças, descrenças, hotéis e mais hotéis.

Fernando Pessoa é citado alguns vezes ao longo do livro e o fato do poeta português ser tão conhecido por seus heterônimos (ele tinha as manhas de fingir ser outro como ninguém mais) acaba funcionando como uma chave para compreender o jogo de espelhos e a metalinguagem empregada de forma brilhante no anticlímax ao final.

Aquele que busca também foge de algo. É um fugir não se sabe de quem não se sabe pra onde, mas sem o sufoco kafkiano, pois aqui não há problema em se deixar encontrar. A angústia e o desnorteamento se assemelha ao drama visto em “A invenção de Morel”e também no filme “O Duplo”, mas a diferença é que nós leitores sentimos isso e não o personagem.

Num certo momento, uma personagem fotógrafa diz que seu melhor trabalho é a foto de um negro que parece comemorar a vitória em uma maratona. Quando questionada sobre o que há demais nisso, ela fiz que esta é na verdade só a primeira foto, um recorte aproximado, pois na segunda foto, com o campo de visão ampliado é possível ver ao fundo um policial atirando nas costas desse negro que não está comemorando e sim morrendo.

O enquadramento é uma escolha do fotógrafo/pintor e até mesmo do escritor, se levarmos em consideração o foco narrativo. Portanto, o que fica de fora deste recorte é também fruto de uma escolha consciente. O que ocorre é que muitas vezes, aquilo que foi preterido no primeiro plano é o que na verdade dá a real dimensão da grandiosidade (e do fingimento) do artista. Antonio Tabucchi, utilizando um poder de concisão impressionante, conseguiu, em menos 100 páginas, criar uma obra-prima em que, ao final da leitura, nos vemos completamente perturbados pelo o que vimos não ali na nossa cara, logo de frente, no primeiro enquadramento, mas sim por tudo aquilo que ficou do lado de fora da moldura.

Nota: 5/5

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