O empata-rolê (6)

Fernando Alves Medeiros
Cafés e Blablablás
2 min readJun 25, 2023

Dentro do carro, tenho que admitir, eu sentia um pouco de inveja do Lohan. Havia uma baita dinâmica domesticada ao redor dele. Bastava ele abrir a boca e disser uma obviedade, algo como “o céu é azul”, para que todos ficassem sérios como que diante da Verdade Maior. Agora se eu falasse “a água é molhada ”, meu amigo já ria entredentes um “é nada”, Dmitri me olharia como um policial ao lado de uma criança que peidou, e Lohan, com a sua voz mais cuzona, diria “isso aí é você que está falando”.

Eu tentava buscar em mim as razões que, certamente, estavam do lado de fora. Talvez fosse a minha linguagem corporal de tímido ansioso, talvez a minha voz sem ênfase, talvez os meus gostos distantes da média, eu não sei. Mas algo em mim devia me condenar a essa posição infeliz. Ou talvez fosse o meu amigo, o qual nunca perdia a chance de minar minha autoestima. A sua tesourinha sempre vinha cortar o meu barato. E, cacete, para ser respeitado ali, o que me faltava? Dinheiro? Um três-oitão carregado?

Uma rua sinistra (Crédito da imagem: Stable Diffusion Online)

Lohan, sem parar, derramava dentro do carro a sua voz manhosa e a sua saliva. As gotículas ficavam suspensas no ar e, em tempos pandêmicos — que já estavam em pleno declínio — , elas tinham ainda a força de atacar a minha hipocondria.

Ele estava muito obcecado por essa Fer, sobre a qual falava tanto. “Cara”, dizia de modo infantil, “que saudade danada eu tenho daquela bocetinha roxa…”. Calou-se, refletindo. “Ei, Figurinha [dirigia-se a mim], você já chupou uma xoxota roxa?”. Eu fiz que não, maquinalmente. “Também…”, disse, “o que é que você entende de mulher?”.

Pensei em falar que a cara dele era de quem fazia amor por trás. Mas me calei. Nem na quinta série eu gostava desse tipo de humor, o que dirá agora, décadas depois. No fundo eu sabia que o convívio entre homens sempre tem esse cheiro ruim de vestiário masculino, sempre há um boçal procurando alguém de escada para chamar a atenção. Eu já devia ter me acostumado, mas porra. Quando eu me veria livre disso?

O motorista nos guiava com uma mão no volante, a outra na nuca, visivelmente entediado. Pela janela, eu via a cara suja de um bairro decadente. O rádio tocava baixo muitas vozes e nenhuma música. Pela vinheta eu reconheci que era a Rádio Jovem Pan.

“Roxinha, a buça da Fer…”, repetia Lohan com uma ternura estranha, o olhar perdido, a boca cheia d’água. “Já a da Bela, não. É rosinha. Tipo chiclete de tutti-frutti”.

No aperto, eu suspirei. Caralho, que viagem era aquela que não acabava nunca?

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