Companheiro

E assim seguiam os dias.

Camila Rocha Vendrametto
CAFÉ FORTE
4 min readNov 17, 2019

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Acordavam às quatro da manhã com o canto do galo. E o rádio acordava em seguida com o canto de Dona Maria e Seu Pedro. A música sertaneja que tocava anunciava o nascer do Sol para mais um dia de trabalho.

O objeto herdado honrava o nome da marca carregada na parte superior direita: Companheiro. Realmente, era como se fosse um amigo fiel para a matriarca. Tinha até um lugar especial no armário da cozinha, que nenhum filho e nenhum neto poderia mexer. Era registrado até com nome, Mineirinho, em homenagem à família da dona, criada em São Sebastião do Maranhão. “O Campeão”, escrito dentro da bandeira do Brasil no canto inferior esquerdo, era o seu apelido entre os filhos do casal. E assim seguia invicto e intacto, com mais de 50 anos de história.

Mineirinho era muito belo, tinha uma madeira lisa, envernizada, que toda semana Dona Maria lustrava para não acumular poeira. Tinha três botões pretos: um para ligar o objeto, outro para mudar a estação, o último para ajustar o som. Tocava até rádio FM, mas Seu Pedro só ouvia a tal de Difusora desde que chegaram no Paraná, emissora que toca músicas antigas, puras lembranças dos dias mineiros. De tanto lembrar de São Sebastião, Dona Maria também não fez questão de trocar de estação. Fazia tanto, mas tanto tempo que ninguém mexia no botão que ele emperrou. Como uma banda de um homem só, Mineirinho se tornou um tocador de uma única estação.

“Ergue o são do mininin!”, pedia ao longe Seu Pedro que de tanto, mas tanto tempo que levava para falar o nome do legado, encurtou. Cususquinão¹, Pedrinho, neto mais novo do casal, vendo que a avó não estava na cozinha, subiu no banquinho para aumentar o volume do instrumento. Como não alcançava o objeto, o pequeno puxou, puxou mais um cadinho… só mais um pouquinho e… pluft! Dois mininin no chão.

Dona Maria, ao ouvir o estrondo, acelerou os passos e exclamou “Meu jesus misericordioso!”. Não sabia qual menino acudia primeiro, mas quando viu que o Pedrinho caiu de um lado e o Mineirinho do outro, ficou mais tranquila. Enquanto um mininin chorava, o outro não falava nada. Não dava nem um “piu”. Seu Pedro não pensou duas vezes, levou os dois no hospital, um em cada braço.

  • Não, Seu Pedro, a gente não arruma rádio não! — exclamou a recepcionista.
  • Mas o mininin não fala, dona, o que que eu faço agora? — perguntou o velho mineiro.

O patriarca levou o mininin desacordado na casa de um vizinho, conhecido por consertar de tudo um pouco. “Ihhhh… está morto, Seu Pedro. Essa fera não liga mais não. Quebrou tudo por dentro! E as peças dessa relíquia são muito difíceis de encontrar por aí, acho que nem tem na cidade”.

Com profundo pesar, Dona Maria preparou uma cerimônia de despedida para o companheiro. Seu Pedro fez até um caixãozinho de madeira especialmente para o falecido, enquanto Suzana, mãe do Pedrinho, tricotava um manto amarelo para enrolar os restos sonoros, na mesma cor e no mesmo tom da toalha que protegia o campeão da família, fizesse chuva ou fizesse sol.

Passou um dia, dois. Três semanas. Um mês. 45 dias sem o amigo, e os filhos já não sabiam o que fazer com tamanha tristeza dos pais. Decidiram, então, dar um presente para o casal. “Olha, um sapinho!”, exclamou Dona Maria ao ver o objeto redondo e pequeno que lembrava os sapos dos rios de sua infância. Agora Seu Pedro, toda vez que acordava, ficava rodando o botão que sintonizava “um monte de programa”, como dizia ao vizinho, sentado com o novo amigo em seu colo, em cima do banco do quintal, onde estava enterrado o eterno campeão. “Mininin, esse aqui é o Sapin, ele fala por demais!”, levava o novo companheiro para todo o canto, respeitando sempre Dona Maria, que gostava de ouvir o terço diariamente enquanto fazia o café da tarde.

E assim seguiam os dias.

Deitavam às seis e meia da noite, com os últimos cantos dos pássaros. O Sapinho dormia após o ronco de Seu Pedro, quando Dona Maria dizia “Boa noite, companheiro”. E o silêncio que tocava anunciava o pôr do Sol para mais uma noite de sonhos.

¹ Significa “Quando susta que não” ou “de repente”, em mineirês.

Trabalho de referenciação realizado para a disciplina de Estudos do Texto, do curso de Letras Português (UTFPR), ministrada pela professora Luciana Pereira da Silva.

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Camila Rocha Vendrametto
CAFÉ FORTE

tenho medo de filme de terror, mas uma coragem enorme pela vida. nosso livro: bit.ly/InVersoEmProsa