Retratos da vida

Uma aproximação possível entre Luandino Vieira e Sebastião Salgado

Camila Rocha Vendrametto
CAFÉ FORTE
9 min readJul 14, 2020

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Visto que a Literatura e a Fotografia surgem como novos discursos significantes e memorialísticos da história de Angola e da sua reafirmação de identidade, pretende-se, neste texto, tecer uma análise tangencial acerca da infância — com base nas cores, nos sentimentos e na memória em “Encontro de Acaso” (1954), conto de A Cidade e a Infância (1960), por Luandino Vieira, e “Segunda Guerra pela libertação da Angola — 1975”, imagem de Sebastião Salgado, presente em África (2007), a partir da teoria e da crítica pós-colonialistas de Thomas Bonnici (2003), seguidas pelos demais referenciais a serem citados durante a análise.

Figura: “Segunda Guerra de Angola”, disponível na exposição “África” (Radio Citta del Capo)

Em “Encontro de Acaso”, Luandino aborda as alegrias que dois amigos de
infância compartilharam na Grande Floresta, onde faziam suas peripécias, um menino negro e um menino branco (um chefe do grupo, enquanto o outro integrante do bando), sem imaginar ainda como o tempo iria separá-los. Agora adultos, um tentou emigrar para a América — sem sucesso, enquanto o outro estudou e tem privilégios como andar com os sapatos engraxados. Ao ver o antigo chefe do bando em um bar, o moço branco — e narrador da história — acredita que este não irá reconhecê-lo, por conta dos olhares tímidos cruzados nas ruas, sem reação, até que esses olhares passam a ter outro foco.

A fotografia-objeto deste ensaio, a ser comparada ao conto, também aborda a lembrança da infância, agora vivida em meio ao início da Guerra Civil de Angola. As crianças veem a câmera com olhares incógnitos, de curiosidade acerca de um objeto pouco conhecido em seu país, na época, e olham escondidas para a incerteza de um futuro de paz. Na Angola retratada no conto e na imagem, as figuras do sujeito e do objeto pertencem a um jogo que não acaba com a Guerra da Independência. Como o oprimido tem sua vida refém da superioridade do opressor, conforme definição de Thomas Bonnici (2003), desenvolve-se mais uma guerra, desta vez a Civil, prolongando o processo de libertação como algo “extremamente árduo” (BONNICI, 2003, p. 238) que se desmancha somente depois de 27 anos. Ou seja, com esse novo conflito, inicia-se uma luta entre os oprimidos que viram o poder aplicado sobre eles em sua pior forma, pela submissão, e que então disputariam entre si o poder de liderar seu próprio povo.

As crianças presentes no enquadramento acima possivelmente viveram grandes consequências das Guerras de Angola, seja como moradores, partes do movimento, possíveis imigrantes ou pessoas reais que representam os personagens do “Encontro de Acaso”. Neste panorama, observa-se, nas crianças de Angola, a necessidade de crescer antes do tempo devido aos conflitos de seu país, mantendo o passado como uma lembrança em preto e branco.

A narrativa “Encontro de Acaso” começa, segundo Joelma Andrade (2014), “de sopetão”. A frase que estreia o conto, Olá, pá, não pagas nada?!, desencadeia um momento de flashbacks à comunidade afetiva da infância.

— Olá, pá, não pagas nada?!
Um encontro de acaso. Um encontro cruel que me lembrou a meninice descuidada. Ele, eu e os outros. A Grande Floresta e o Clube Kinaxixi refúgio de bandidos. Os pardões e os pássaros. As fugas da escola. […] Um encontro de acaso! (VIEIRA, 2007, p.11)

As mudanças pelas quais Luanda passa impactam as personagens e as
transformam.
Uma delas é o desconhecimento: “já não me conhecia. Era-lhe estranho. E eu quase chorava ao ver ali o meu chefe da Grande Floresta, que não me cumprimentava, farrapo da vida.” (VIEIRA, 2007, p.13).

Outra mudança que impactou a vida do chefe da Grande Floresta foi a tentativa de migração, passagem comum durante a colonização portuguesa. Segundo Thomas Bonnici (2003), “o legado do imperialismo foi construir as estruturas científicas sobre crenças existentes e herdadas, com a finalidade de indicar e consolidar os supostos donos do mundo”, o estabelecimento de colônias foi uma forma dos portugueses, homens brancos, se registrarem como donos do mundo. Essa imposição fazia com que os colonizados tentassem sobreviver em meio aos conflitos de poder. A Grande Floresta, nesta história, seria o lugar onde os personagens do conto poderiam chamar de “seu” ou, ainda, de exercer algum tipo de poder nesta Angola colonizada:

A vida separou-nos. Cada um com a sua cela nesta imensa prisão. Não éramos mais os cavaleiros da Grande Floresta. Uns continuaram a estudar. Outros trabalham. Ele não continuou a estudar. Mais tarde soube que tinha tentado ir clandestinamente para a América, dentro de um barril, mas que fora descoberto perto de Matadi. (VIEIRA, 2007, p.12)

Neste encontro de acaso, o narrador-personagem rememora a sua infância com o “chefe da Grande Floresta”, acaso pois as mudanças de Luanda os impactaram e distanciaram para tentarem viver longe das dores dos primeiros anos de vida. Conforme Andrade (2014), em complemento ao impacto social de Luanda abordado por Silva (2015), nesta estória há um recorte que realça as relações humanas dos tempos de criança, em que as diferenças sociais não importam:

Reconhecer-me-ia ele por detrás do meu disfarce feito de fazenda e nylon, de uma barba bem escanhoada, dos meus sapatos engraxados? Não, ele não podia ver que eu era o mesmo menino do bando, que comia com ele jinguba e peixe frito na loja do velho Pitagrós. Ele não podia ver que eu era o sócio dele nas grandes rifas que fazíamos. […] Mas eu, por detrás daqueles modos bruscos, daquela voz rouca, via o mesmo chefe, sedento de aventuras, que matava rabos-dejunco só com uma fisgada. O chefe que conseguiu subir a uma mafumeira. (VIEIRA, 2007, p.13)

Durante a narrativa, existem poucas ações, pois os flashbacks acontecem
somente para o narrador, ou seja, o tempo do conto é o tempo da memória. Esses flashbacks acontecem em um baile. E esse baile proporciona o “Encontro de Acaso”, sinalizado no clímax da estória relatado a seguir. A frase que inaugura o conto é retomada pelo chefe da Grande Floresta, no momento em que as memórias com o antigo amigo vêm à tona, e ambos não são mais vistos como desconhecidos do presente:

Ele chegou-se. Conservei-me quieto. O seu hálito tocava-me. Suportei tudo e
inconscientemente sorri. Ele despertava em mim todas as imagens da minha infância. Por isso eu sorria, com um sorriso que o tocou. Olhou bem para mim e bateu-me no ombro. — Olá, pá, não pagas nada?! E eu vi no brilho dos seus olhos mortiços e raiados de sangue que me tinha reconhecido. (VIEIRA, 2007, p.14–15)

A partir do que é narrado, o leitor cria expectativas acerca desse reencontro, mas tão logo a estória termina. Agora, para os dois, as lembranças do passado voltam a ter um significado colorido no abraço fraternal:

E na noite quente, eu e ele falámos muito, toldados ambos pelo palhete da taberna. […] Cá fora, sumindo-se na escuridão, negra como eles, os dois amigos cambaleavam abraçados. E o da harmónica tirava do instrumento uma música que parecia arroto de bêbado através de palhetas, mas que no fundo era a canção de todos nós. (VIEIRA, 2007, p.14–15)

Assim como em Luandino Vieira, nada em Sebastião Salgado soa arbitrário.
Retratos de uma África modificada com o tempo, registrados em suas fotografias. Enquanto a economia é acelerada, muitas pessoas sofrem com os conflitos de suas terras. Em Angola, além da pobreza, existiam dois conflitos que impactam seu povo até hoje: A Guerra da Independência (1961–1974) e a Guerra Civil (1975–2002). A fotografia-objeto deste ensaio, como o conto, também registra a lembrança da infância. De acordo com Savaris e Santos (2017), “A percepção é de fundamental importância para os fotógrafos, os detalhes são importantes — luz, sombra, textura, enquadramento. É a totalidade complexa destes elementos se relacionando, que se cria o significado de cada imagem.” Diante desse cenário, torna-se necessário identificar os elementos semióticos e suas significações na fotografia para entender a produção de efeitos e valores para quem visualiza a foto, ou seja, recebe a comunicação.

No primeiro plano, pode-se observar as botas de uma pessoa, que
possivelmente é Salgado fotografando. A foto, em seu todo, apresenta crianças que parecem curiosas em relação ao fotógrafo e sua câmera. Com o close-up da imagem, essas crianças estão centralizadas e são o destaque do retrato. Como já dito, nada em Salgado é por acaso; essa imagem representa a infância que, curiosa, ainda não entende o que está acontecendo e o quanto o sofrimento vai durar, crescendo, aos poucos, em um ambiente hostil representado pelo cenário das guerras. Além das crianças, existe um pé ao lado que simboliza a presença de outras pessoas e de uma possível concentração com o início da nova guerra. Essa imagem, com sua extensão, revigora as descrições do narrador de Luandino, do bando de meninos e da Grande Floresta, as quais o leitor lê como extensa por meio da imaginação do personagem.

Existe uma grande diferença entre manter todos os objetos na cena ou deixá-los vazarem da imagem. No retrato em análise, por exemplo, não há como saber o que a criança da esquerda está vendo, então desperta-se a curiosidade de quem vê, assim como a curiosidade em “Encontro de Acaso” acerca do desenrolar da amizade dos dois amigos de infância. Ao ver a imagem, podem ocorrer algumas perguntas na cabeça do visualizador: “A criança teve medo em olhar para a lente da câmera? O que prende a atenção dela do outro lado da imagem?”

A infância é um momento de inocência sobre a realidade, de acordo com
Andrade (2014), quando as diferenças sociais não importam. Sebastião retrata, através dessa imagem, o passado de uma Angola sofrida. Assim é em Luandino, quando seus narradores descrevem e rememoram as estórias das suas personagens em uma Luanda que carrega alegria e, também, sofrimento nos olhares. A fotografia de Salgado é um objeto de significação que reforça esses olhares, onde os mecanismos constituem um “todo significativo” (ALMEIDA; DURO; GIUDICE; 2016). A escala em cinza, das imagens em preto e branco, é um dos feitos de Salgado para transmitir a cena retratada. Assim o faz Luandino, por meio das lembranças das descrições do cenário e das características de suas personagens.

Na Fotografia, as cores têm influência sobre a composição da cena e das
emoções de quem a observa. A composição cromática tem o poder de definir o que as pessoas entendem ao ver a imagem. Em preto e branco, “identificamos as sensações e as associamos às nossas memórias” (BELAF, 2013).

Em Salgado, a escala em cinza, além do ilustre tom de lembrança e de
memória, retrata a cena em si, por meio do alto contraste entre as cores preto e branco, que trazem profundidade para os planos figurativos, atribuindo realidade à cena e aproximando o espectador — como se fosse o fotógrafo do registro.
O fotógrafo deseja que o espectador se concentre na cena, nas caras e nas bocas, no cenário, e não nas cores. Isso atribui maior impacto ao contexto retratado. Em Luandino também há esse foco, quando o narrador encaminha o leitor ao mais fundo dos flashbacks, esquecendo um pouco de sua própria realidade ao refletir sobre a coesão visual da realidade do outro.

As crianças da imagem possivelmente tiveram grandes consequências das guerras de Angola em suas vidas, assim como as vidas das personagens do “Encontro de Acaso” foram impactadas com as mudanças do tempo. Devido aos conflitos, observa-se a necessidade das crianças de Angola crescerem antes do tempo e deixarem a infância para trás, como uma lembrança em preto e branco, sempre presentes em suas vidas, assim como nas obras de Luandino Vieira e Sebastião Salgado.

Após a necessária articulação teórica do trinômio memória, literatura e
fotografia
, comprovam-se aproximações possíveis entre “Encontro de Acaso” (1954) e “Segunda Guerra pela libertação da Angola — 1975”, sob os conflitos sociais registrados na história do povo angolano. Nesse prisma, os objetos analisados atuam como fomentadores das marcas históricas, memorialísticas e libertárias.

Ao lançar luzes sobre a subversão revisionista histórica atual — em tempos que ditaduras são descritas como períodos de “ordem e progresso” — torna-se imprescindível destacar esses trabalhos fundamentais para a reafirmação das narrativas de Angola e para o conhecimento de Luandino Vieira e Salgado Filho, dois grandes nomes do registro da memória. Um conto, uma fotografia e milhões de narrativas: retratos da vida.

Análise comparativa realizada para a disciplina de Literaturas Africanas, do curso de Letras Português (UTFPR), ministrada pela professora Clarissa Comin.

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Camila Rocha Vendrametto
CAFÉ FORTE

tenho medo de filme de terror, mas uma coragem enorme pela vida. nosso livro: bit.ly/InVersoEmProsa