A infantilização e imbecilização da mulher em “Cinquenta Tons de Cinza

Lila Cruz
cafeinazine
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5 min readFeb 6, 2017

Quando o primeiro Cinquenta Tons de Cinza saiu, eu tinha sido liberada mais cedo do trabalho, graças ao Carnaval, e estava disposta a me submeter a um experimento no qual eu sabia que iria, no mínimo, me irritar. Fui assistir o filme baseado no livro homônimo e sucesso de vendas e sabia que ia me estressar, mas pelo menos era cinema, era pipoca, era refrigerante. No final das contas, nada disso me salvou daquele constrangimento.

Logo que sentei na cadeira, notei a empolgação da menina ao meu lado. Ela conversava com a outra:

– Tô tão ansiosa, espero por esse filme desde 2011!

A cada trailer novo várias meninas desesperadas gritavam “Começa logo!”. Já havia, claro, pessoas fazendo selfies e ignorando o escuro do cinema. Quando o filme começou, as selfies se intensificaram, além de serem incluídas no balaio as fotos da tela do cinema. E se iniciaram também os gritinhos de excitação.

Já tinha minhas ressalvas com o livro, que colocava a personagem principal, Anastasia Steele, como uma moça “forte”, como só a literatura arroz com feijão sabe fazer, inteligente e invariavelmente inocente e abestalhada. Mas o filme consegue ser pior. A atriz que faz o papel de Anastasia, Dakota Johnson, tem cara de criança e mal consegue disfarçar seu descontentamento com o filme — quase como a gente faz um freela com aquele cliente chato só porque tá apertado de dinheiro.

Para, gente, não quero. (sussuro)

Mas vai além. Anastasia não fala, sussurra durante todo o longa. Morde os lábios de maneira forçada e calculada (não por ela, mas pelo roteiro insosso), do mesmo jeito forçado que Adelle, de Azul é a Cor Mais Quente, come e respira de boca aberta, o tempo todo, numa tentativa de sexualização dos pequenos detalhes. Anastasia tropeça, vomita, se desmonta na frente do Robocop, digo, Christian Grey (o terrívelmente imóvel, até pros padrões Keanu Reeves de qualidade, Jamie Dornan). Ela é frágil, romântica, estudante de literatura inglesa, de franjinha, com um fusquinha e rosto coradinho (tudo no diminutivo mesmo). Está o tempo todo suspirando como a “inocente sexy” ideal dos filmes pornô soft, é uma menininha nas mãos de um cara rico, poderoso e dominador.

“Ana” é tratada como criança. Ela é beijada na testa o tempo todo. Grey chega a colocar o cinto de segurança nela em uma cena, enquanto ela permanece parada, “olhando como se faz”. Só faltou o Grey chamar Anastasia de “Kid”, como fazia Big em Sex and the City. O que mais me entristece é saber que muitas mulheres se sentem atraídas por esse sociopata — porque aquela não é só uma relação sadomasoquista de dominador e submisso — e o aplaudem quando ele bate nas pernas de Anastasia enquanto ela conta para a família dele que passará o fim de semana com a mãe dela. Aplaudem quando ele repete “Você é minha”, quando ele aparece nos lugares para buscá-la sem ser convidado, quando dá ordens a ela e usa como desculpa para suas atitudes o abuso sexual que sofreu (e, claro, é super normal que atualmente ele seja amigo da abusadora, oras). Claro, ele vai mudar, ele sofre, tudo é justificável. Ele tem um passado triste, tadinho.

Isso não foi um afago sensual como está parecendo, acredite.

É engraçado como homens violentos (alô, Sean Penn) tem seus crimes “abonados” por serem ricos ou por fazerem sucesso ou ainda por passados difíceis. É como se Grey comprasse Anastasia e todas as mulheres que suspiram, ao dizer “Todos esses carros são meus” e mostrar suas habilidades — óbvio que ele toca piano, pilota helicóptero, dirige um negócio milionário com 27 anos, enquanto ela é uma imbecil que não sabe colocar o cinto de segurança sozinha. Até que ponto a violência contra a mulher está sendo romantizada e revertida numa coisa sexy? Até onde isso está sendo transformado em “Ok, ele é violento e controlador, mas tudo bem, desde que ele tenha um peitoral legal e dinheiro, aí é um conto de fadas”? Não estou falando do Sadomasoquismo como violência, mas do controle psicológico, da violência no cotidiano, como a cena em que ele arremessa o amigo dela numa pista ou quando ele a carrega na frente da casa dele como um saco de açúcar, só porque quer que ela ande mais rápido.

Quer ver um exemplo do machismo explícito de 50 tons de cinza (que quer se sair como libertação feminina)? O filme exibe Dakota nua inúmeras vezes, mas em nenhum momento mostra mais que a bunda do Jamie. E isso é um hábito de Hollywood, por sinal. Anastasia é a conduzida, a suspirante, a fracassada, que, claro, por ser todas essas coisas (e VIRGEM, O MAIS IMPORTANTE), é motivo para todos os homens morrerem de amores. Ela simula um livre arbítrio no final do filme, mas não esqueça de que o longa faz parte de uma trilogia, onde, no final, Anastasia vai ficar sim com o Robocop. Ela é o exemplo de mulher que a sociedade machista deseja: menor que o homem, pura, inocente, volúvel, submissa, influenciável e comprada pelo sucesso do parceiro.

Frases como “Agora vamos limpar você”, “Eu não faço amor, eu fodo. Com força” ou “Eu já disse pra você não me amar” arrancam suspiros da plateia. Uma das meninas das cadeiras da frente até disse “Agora fiquei com tesão”. E assim doutrinam as próximas gerações, cada vez mais adeptas dos livros escritos pelas tias americanas que inspiraram o Desperate Housewives, para que esse tipo de ode ao machismo seja considerado um “conto de fadas”, quase como se eu imprimisse dinheiro numa impressora jato de tinta e tentasse comprar coisas no mercado com ele. Cinquenta Tons de Cinza te diz basicamente que você precisa ser inteligente, porém imbecil, e só se magoar mesmo depois que o cara ultrapassar todos os limites do bom senso (porque ele manda nela, mas são os tapas na bunda que a magoam, claramente, claramente).

Não pode tocar no bofe? Tá, ok. Não pode desobedecer o bofe? Tá, aceito. Ele vai me bater e bater em meus amigos no meio da rua? Aceito.

Ele só precisa ter tido uma vida difícil, tadinho.

(suspiro.)

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