Sete dias sem ele

Lila Cruz
cafeinazine
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7 min readApr 12, 2016

Uma semana inteira sem o smartphone pode parecer o momento ideal para desconectar da web e da loucura do constante fluxo de informação — ou pode ser o momento certo para o desespero. E não é só uma questão de escolha

“Bem, você vai ter que deixar ele aqui”, a técnica da assistência me informou. “Ele está com problema nas duas entradas de áudio, vamos te entregar um novo. O prazo é de sete dias”. Eu tinha exatos cinco dias antes de fazer uma viagem, então estava contando que chegasse antes. Aquela foi a primeira vez em quatro anos que deixava o conforto de ter tudo à mão no celular. Eu achei que seria difícil, estou conectada o tempo todo, mas ao receber da técnica meu chip e colocá-lo num celular cuja função é apenas ligar para as pessoas e no máximo enviar uma sms, pensei que talvez fosse esse o momento certo para me livrar um pouco dos aplicativos de bate papo, de email e redes sociais. Me empolguei.

Primeiro dia — Todos os dias desço uma considerável ladeira até chegar no local para pegar o ônibus para o trabalho. Vou ouvindo música, então nem percebo que meus passos se aceleram (ou ficam mais lentos) a depender da música que toca. Desta vez, no meu primeiro dia também sem o spotify do celular, achei que seria um suplício descer aquela ladeira só com o barulho da rua — e esqueci do barulho que faz minha própria cabeça. Tentei ligar a playlist interna da minha pessoa, mas nela repetem-se, no momento, umas quatro músicas da Haim (um trio de mulheres, música pop maravilhosa), e só. Não me dei conta que andei tomada pelos pensamentos sobre trabalho, planos para o futuro, sobre as atribuições do dia a dia, prazos de coisas…e cheguei ao meu destino. Achei até fácil.

Segui o dia normal, e fiquei até feliz sem receber notificações de email e tantas outras coisas, nem precisar me sentir constrangida a responder mensagens de whatsapp que eu simplesmente não queria responder. Eu estava sem nenhuma rede social, exceto quando estava no computador. Me pareceu libertador. Na volta pra casa, senti falta de novo das minhas músicas, porque eu não conseguia tirar a minha soneca clássica no ônibus — muita gritaria, barulho e, claro, não dava pra fingir que não estava ouvindo quando as pessoas se aproximavam para interagir por tempo indeterminado. Eu sei, não é legal fingir, mas veja bem, está de noite, está tudo engarrafado e você está com sono. Às vezes, a única saída é fingir a desentendida, pra conseguir a soneca tão desejada.

As coisas começam a complicar — No dia dois achei que ia estar mais empolgada, porque o primeiro dia foi até relaxante. Mas o trajeto até o trabalho ficou mais cansativo sem a distração de AC/DC, Motorhead, Chuck Berry e, como contraste emocionante, Haim (quem faz uma playlist dessas?). Já comecei a ficar mau-humorada, porque notava as pessoas jogando lixo pela janela do ônibus, falando sobre política, passando cantada…e eu tentei me desligar, mas, no ônibus, é meio complicado. Meu celular com suas funções básicas começou a me chatear também — pra mandar mensagem eu precisava demorar para digitar, afinal, são as teclinhas que separam abc no 1 e por aí vai. Não conseguia mais falar com meus amigos tão facilmente, porque não é todo mundo que atende ligação nos tempos de hoje, só que em compensação meu celular, mordido por cachorro, com tela quebrada e similar a um nokia de 1999 não atraía a atenção de absolutamente ninguém.

Em uma pesquisa realizada em 2013, a Gazelle, uma das líderes em e-commerce de eletrônicos nos EUA, entrevistou seus consumidores e descobriu que 70% dos entrevistados acessa o celular pela primeira vez no dia em até uma hora depois de acordar. Mais da metade (56%) acessa o smartphone antes de dormir, 48% checam regularmente também no fim de semana, 51% não deixam de checar nem nas férias. Dos entrevistados, 44% afirmam ficar irritados e ansiosos se deixam de acessar o aparelho durante uma semana.

Talvez todas as minhas reclamações fossem só frescura e eu estivesse sofrendo mesmo era de abstinência. Existe até uma expressão pra o que vive um heavy user de smartphones: mobile phone overuse (algo como overdose de celular). Ainda que não seja considerada doença, a compulsão por uso de smartphones foi comparada, na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) ao vício por jogos, que é considerado doença. A questão de o uso excessivo destes celulares ser ou não um vício que pode ser classificado como doença ainda divide opiniões, mas já existem cientistas que afirmam que o barulho de uma nova mensagem no aparelho faz com que o cérebro libere dopamina. Já existem, inclusive, alguns sinais apresentados por pesquisadores que podem apontar se o seu uso do smarthpone está ultrapassando o limite do saudável, sinalizando aspectos como muitas tentativas sem sucesso de diminuir o uso diário do aparelho, necessidade constante de novos aparelhos, aplicativos e mais tempo de uso, irritabilidade, tensão, raiva e outros quando o smartphone/celular está fora de alcance.

Alguns estudos apontam que o excesso de uso de smartphones provoca, entre outros, distúrbios do sono, depressão, ansiedade, dores de cabeça e vista cansada ou turva

Fonte: psychguides.com

Senti pelo menos um deles: aos poucos, fui ficando mais e mais chateada, porque percebi que muitos dos meus hábitos cotidianos envolviam o aparelho: assistir vídeos antes de dormir, responder emails pela manhã, fazer operações bancárias pelo aplicativo, ver saldo do cartão de crédito e responder mensagens de clientes. De repente não sabia mais o que fazer antes de dormir — e nesse aspecto, estar sem o celular foi ótimo, porque me voltei mais para as revistas e livros. Passei a sempre ter uma revista ou livro na mão, como fazia quando era mais nova. Não responder as pessoas de imediato também foi muito útil para quebrar o senso constante de urgência. O dia da minha viagem chegou, por exemplo, e eu não podia mandar emails de trabalho e responder mensagens no aeroporto. Só podia jogar os jogos meio Atari do meu celular 1999 e mandar sms, no máximo. Lado bom: fiquei expert naquele jogo basicão da cobrinha. Outro lado bom foi ficar bem por fora de todas as notícias, de comentários das pessoas e das polêmicas da web. Fear of missing out realmente não foi o caso do meu desconforto sem o smatphone, eu adorei ficar out.

Cinco dias e outra cidade — As mudanças eram evidentes — ficava mais rabugenta nos ônibus, fator provocado pelo excesso de reflexão sobre a vida que o dia sem trilha sonora me permitia, mas também passei a ler mais e a me concentrar mais em uma coisa de cada vez. O que mais fez falta foram os aplicativos que facilitam a vida, como o do banco. Fazer transferências e pagamentos a qualquer hora é realmente uma mão na roda. Sem isso, o jeito foi ir ao banco e sacar dinheiro sempre que eu precisava. Também não dava pra chamar táxi por aplicativo, coisa que parece besteira, mas espere até precisar pegar um de noite para ir para o aeroporto. Fui dando meu jeito, pegando o celular da amiga e fazendo acordos com ela pra usar o Uber (que por sinal é a melhor coisa do universo), planejando a grana que tinha na mão e ainda muitíssimo feliz por não receber nenhuma notificação de facebook, whatsapp ou gmail. Só utilizei o computador uma única vez, mandei emails e me tornei novamente incomunicável, exceto para os amigos, família e alguns clientes que tinham meu número. Senti falta de tirar fotos das coisas maravilhosas que estava fazendo, dos amigos, dos gatos, de qualquer coisa. Senti falta do Instagram, mas aí me lembrei que estava vivendo as coisas, as fotos podiam ficar pra outra ocasião.

Mas o pior de todo o processo era esperar — seja no aeroporto, seja por um atendimento, seja qualquer coisa. O jogo da cobrinha logo ficou cansativo. O livro estava quase no fim. Não havia youtube. Eu não podia usar o aplicativo da TAM para ver filmes. Fiquei lá ouvindo a rádio superboa deles, mas no voo da volta as cadeiras estavam com conexão ruim. E eu fiquei lá, querendo assistir Birdman.

Logo recebi a ligação de que meu celular havia chegado. Eu ainda estava em São Paulo. Na volta da viagem, fiquei num impasse comigo mesma: se eu tinha vivido minha vida toda sem esses aparatos tecnológicos (afinal, tenho 29 anos, sou daquela geração do meio), qual é o problema agora? Será que não sei ficar sem fazer nada? Só comigo mesma, sem nenhum recurso extra? Estamos todos assim mesmo?

No ônibus para Guarulhos, senti ainda mais saudade de poder ouvir música, assistir vídeo. Todos sentados, com seus fones de ouvido, olhando o celular. Na TV, o Jornal Nacional. Tentei, desesperada, plugar o rádio comum do meu celular 1999. Não tinha antena, ou sei lá o quê. Tentei cantar músicas da minha playlist interna para evitar o bendito jornal. Arranjei uma alternativa melhor: esperei a hora do ônibus sair do lado de fora.

Se estivesse com meu smartphone já estaria ouvindo Rage Against The Machine. Ou Haim.

A primeira coisa que fiz quando cheguei em Salvador foi pegar a criança de volta. E reinstalar as porcarias todas. Sinal de que eu realmente preciso ficar sem celular, de tempos em tempos.

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