Matteo Perdeu o Emprego

Eder Alex
Café Com Traça
Published in
3 min readMay 25, 2015

(Gonçalo M. Tavares)

Não tive filhos, não escrevi um livro e não me lembro de ter plantado direito uma mudinha de araucária quando estava na quarta série, portanto, para tentar evitar que minha existência acabe em completa nulidade, tento aqui fazer algo que preste para humanidade ao avisá-los: façam um enorme favor a vocês mesmos e leiam Gonçalo M. Tavares.

Não sabia nada sobre o escritor que nasceu em Angola, mas que viveu em Portugal, até o dia em que esbarrei com o belíssimo “Uma viagem à Índia”, há alguns anos, e fiquei encantado. Na época, o que pensei de imediato foi “Como assim um autor contemporâneo consegue escrever de modo a nos fazer relembrar a literatura clássica? E isso tudo numa linguagem límpida, moderna e que jamais resvala no pedantismo?”.

Espia só esses trechos:

“E a religião é encantadora como tudo o que não tem

função particular que possa ser avaliada objectivamente.

O que é vago e abstracto acerta sempre

porque nunca definiu o que é não acertar” (pág. 299)

“É claro que as noivas, cinco minutos antes das

núpcias com 200 convidados, não gostam de

ouvir falar de 100 mil mortos no outro lado

do mundo. Porém, se a desgraça acontecer longe,

ninguém pedirá à orquestra para tocar

mais baixo” (pág. 331)

Foda, né?

Falemos, pois, de “Matteo Perdeu Emprego”, lançado em 2013 no Brasil pela editora Foz. Aqui Gonçalo M. Tavares consegue ser ainda mais impressionante, pois compõe um livro de contos, em que todas as histórias estão interligadas em ordem alfabética com base na primeira letra do nome de cada personagem. Primeiramente temos as histórias de Aaronson e Ashley, depois Baumann e Boimann, em seguida Camer e assim por diante até chegarmos ao coitado do Matteo do título.

Em “Dublinenses”, James Joyce utiliza a cidade como elemento de conexão entre as narrativas, já em “Matteo perdeu o Emprego”, esta proximidade se dá de maneira mais elaborada e objetiva, porque é constituída tanto pela forma, como no caso das iniciais dos nomes e das representações geométricas (um personagem que corre numa rotatória, pois ao fazer isso “ninguém volta atrás, ninguém se engana, ninguém tem de assumir o erro e fazer inversão de marcha”) , quanto pelo aspecto filosófico da narrativa circular, de eterno retorno a que todos os personagens estão submetidos. A vida segue em frente, mas parece sempre chegar ao mesmo lugar em que começou e no fim das contas, parece que o passado sempre se impõe diante do presente. Afinal, em que se diferem o seguir em frente e o retornar quando o caminho trilhado é sempre o mesmo? A direção é o que nos define?

O livro está repleto de histórias curiosas e impressionantes, como a do homem que recolhe o lixo das ruas, lava cada parte com muito cuidado, inclusive as cascas de banana podre, e depois devolve tudo nas prateleiras do supermercado; ou a história dos dois sujeitos que entram num labirinto tipo aquele do “O Iluminado”, deixam um trilha de migalhas de pão atrás de si para marcar o retorno, mas acabam se perdendo, pois crianças pobres entram lá e comem tudo.

O inusitado presente nestes enredos (e que leva, com razão, muita gente a comparar Gonçalo M. Tavares ao Kafka) trazem ao mesmo tempo perplexidade e reflexão dada a sabedoria (tão raro poder usar essa palavra nos dias de hoje) contida a cada linha. E como se tudo isso não fosse o suficiente, ainda temos no terço final do livro um posfácio com pequenos ensaios do autor a respeito de tudo aquilo que acabamos de ler. E se isso te faz gelar de medo pensando que o cara te chamou de retardado e se meteu a explicar a própria obra, pode relaxar, pois o que o que Tavares faz ali, de modo brilhante, é ampliar ainda mais os questionamentos iniciados nas narrativas. Ele acaba por borrar as fronteiras de gênero entre ficção e não-ficção e cria a partir disso uma forma nada convencional de fazer literatura. Olha, tem que ter culhões para arriscar uma coisas dessas.

Sendo um pouco mais direto e acadêmico: esse cara é foda, leiam tudo o que encontrarem dele.

Nota: 5/5

Título: Matteo Perdeu o Emprego
Autor: Gonçalo M. Tavares

Editora: Foz

Ano: 2013
Número de Páginas: 160

Originally published at cafecomtraca.blogspot.com.br.

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