"Perdi meu corpo" (Clapin, 2019) — a tragédia que se transforma em poesia

A princípio, uma mão que parte em busca de seu corpo pode parecer, em um primeiro momento, uma animação absurda, fantasiosa e genérica

Bruno Oliveira
caixadesaturno
4 min readJun 22, 2020

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Ledo engano.

O argumento dessa animação lembra um pouco o do clássico “O Nariz”, de Nikolai Gogol — na trama russa, o nariz se cansa do seu dono e abandona o rosto por conta própria, mas em “Perdi meu corpo” ("J’ai perdu mon corps", no original), a mão é separada do seu dono e vai lembrando, junto com a audiência, sobre o que aconteceu para chegar naquela situação.

Cartaz de divulgação virtual de "Perdi Meu Corpo" (imagem: divulgação/Netflix)

A parte técnica

A animação é dirigida pelo francês Jérémy Clapin, que ganhou o prêmio da Semana Crítica de Cannes como melhor filme (a primeira animação a conseguir o feito). Também foi co-escrito por Guillaume Laurant, responsável pelo roteiro de Amélie Poulain. A animação também possui uma trilha sonora melancólica e bastante imersiva de Dan Levy e que harmoniza bem, inclusive, com os silêncios dos personagens em diversas cenas.

Ambos em uma produção original da Netflix e ambos indicados ao Oscar de 2020, mas acabaram perdendo para "Toy Story 4". Os traços da animação sugerem uma sutileza, aumentada pelas cenas em ângulos atípicos (sempre com foco nas mãos dos personagens) e com cores em um mix de saturação e hachura, que indica um ambiente de sobrevivência e luta.

Esse é um filme que dá para chorar, dá para se identificar com várias das situações dos personagens e dá para refletir bastante sobre autoconhecimento, além de ser uma animação muito bonita — apesar de não ter traços tão usuais, os desenhos são leves, sutis e as cenas são bastante contemplativas, bonitas e as vezes até assustadora. Uma miríade de sentimentos na tela do cinema — ou, nesse caso, na tela da TV, já que é distribuído exclusivamente pela Netflix.

Há romance em "Perdi Meu Corpo" (imagem: divulgação/Netflix)

Um pouco do simbolismo do filme…

Essa animação adulta apresenta dois personagens principais: a mão, e a dor física que sofreu, e o seu dono Naoufel, com sua dor emocional. Ao longo dos flahsbacks que ocorrem em todo o longa, ambos vão lembrando de momentos dos passados e em todos esses momentos há destaque para as mãos (do protagonista ou de outros personagens) e o simbolismo delas em retratar tanto os sentidos quanto os sentimentos: as mãos que tocam música no piano, as mãos dos bebês que descobrem o mundo, as mãos que desenham um graffiti, as mãos das bibliotecárias que organizam os livros, entre outros sentimentos que vão de demonstração de carinho à solidão — é a busca de afeto pelo tato, é a mão que toca o coração e que consegue sentir, ouvir e ver as batidas de emoções.

Talvez a temática mais importante do filme é a que versa sobre o destino e de como temos controle (ou não) sobre ele — desde o sonho do jovem Naoufel em ser astronauta até a triste realidade em ser entregador de vida e depois uma realocação para ser aprendiz de marceneiro.

Uma metáfora bastante importante na animação é a da mosca, que ocorre em duas situações: (i) a primeira durante um flashback em que o jovem Naoufel tenta agarrar a mosca, mas ela sempre escapa da sua mão; e (ii) é a distração com a mosca, desta vez no presente, que lhe causa a perda de sua mão. A mosca, por meio de seu movimento errante, seria aqui o destino, sempre por perto, e por mais inofensivo que ele possa parecer, ele estará presente em vários momentos da sua vida; e temos que nos adaptar a ele.

– E depois que enganou o destino, o que faz?
– Você se mantém longe. Corre às cegas… e torce para dar certo. (Giancarlo Lopes)

Naoufel admira a mosca (destino) em um dos flashbacks (imagem: divulgação/Netflix)

O fato de Naoufel perder sua mão demonstra uma perda de sensibilidade, de deixar tudo o que passou para trás, depois de todas as decepções que teve ao longo da vida (dos sonhos que não se realizaram, dos amores não correspondidos, dos mal-entendidos e da vida medíocre que leva).

Toda a jornada que a mão e o nosso protagonista faz durante todo o filme é uma busca por si mesmo, por autoconhecimento e de, talvez, tomar de volta o controle de sua vida. Uma busca por algo que lhe falta, para se completar novamente, e quem sabe chegar ao momento de se livrar dessa dor: física e emocional.

A mão tenta encontrar a luz para sua jornada (imagem: divulgação/Netflix)

A poesia está em toda parte, mesmo nas gotas de chuvas que entristecem as cenas ou nos cinzas inebriado de Paris. Como boa parte do tempo de tela é dedicada à mão, não há muitas falas na maior parte das cenas, o que cria imagens que podem ser interpretados da melhor forma com quem está assistindo: imagens que vão do banal (como um “passeio” pelos metrôs sujos de Paris) ao íntimo (como as diversas tentativas de Naoufel em impressionar Gabrielle).

Edição e revisão realizadas por Gabriela Prado.

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Bruno Oliveira
caixadesaturno

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.