Asmaria

Juliana cajives
cajives
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4 min readJan 24, 2020

Nasci a seco. Na verdade, nada pode provar que minha mãe não estivesse no perfeito funcionamento das lubrificações necessárias durante o parto. Mas tenho muita certeza de que, pela maneira como aprendi a crescer, o nascimento foi na secura.

Cresci em ambiente árido e há espanto hoje, quando de fora, digo que onde vivi havia tempestades de areia. Nos ventos de agosto, tudo ficava vermelho misturado com o turvo das fumaças. E há espanto hoje, quando de fora, digo que fumo.

Na infância toda, estive asfixiada pelo nariz, pela entrada dos pulmões, pela areia. Era recorrente a sensação da pele virar terra, começar a salpicar os grãos por onde eu fosse. Ia ficando um caminho vermelho por onde andava, tossia e parava de andar.

O quarto vivia com toalhas molhadas, bacias, baldes com água. Ouvia histórias de crianças com problemas respiratórios que morriam afogadas por causa das águas no quarto e eu nunca aprendi a nadar.

Sempre asfixiada no ar.

Este é o chapéu de vovô. Era usando este ou um muito parecido, que ele me levava todos os dias no lombo do cavalo até a fazenda mais próxima para que eu pudesse pegar a kombi escolar da prefeitura. Branca, com uma faixa amarela, declarando a função grafada em preto alto.

O cavalo, Roxinho, era um pangaré que aguentou essa rotina, além da minha voz, meus passeios, meus primos. Pela minha voz, ele aguentou meus primeiros segredos. Foi pra ele que contei de medo, de saudade, de solidão. Sempre solidão.

Tempo atrás, li uma reportagem acerca das mortes silenciosas de homens que trabalham nessas fazendas ricas que têm cilos de armazenamento de grãos. Eles vão caminhar sobre a soja e, sugados como líquido, se afogam, dragados.

Na época de Roxinho, eu ia para a escola que ficava no centro da corrutela. Como o povoado era pequeno, no recreio as crianças saíam para brincar soltas. Deixar criança solta era coisa daquele lugar.

Num desses recreios, fomos brincar num celeiro onde havia montes de milho que iam até o teto. Subimos um monte de milho e minha perna, com o tamanho que tem hoje meu braço, começou a ser engolida, quando o suficiente de perna entrou, os quadris mergulharam.

Quando tinha pouco peito na superfície, um braço puxou o meu. Fui sendo revelada até aparecer por todo, mas não completa. A sandália foi consumida pelo milho. Um tamanquinho que eu gostava de usar entortando o pé.

Eu usava qualquer calçado entortando o pé e qualquer calçado era meu tamanquinho, o único. Agora soterrado pelo milho. Imaginei o sapato virando fubá, pamonha, cuscuz. Voltei manca na kombi, agarrando com os dedinhos o par que restou, solitário. Sempre solidão.

Não guardo a lembrança de como o problema do calçado foi resolvido. Sei que não voltei descalça para a escola. Nada faltava na completude lacunar da minha infância.

Quando vovô morreu, li atentamente seu atestado de óbito a caminho de alguma missão cartorial. Nome, estado civil… profissão: lavrador. É a profissão de todo homem do mato para que ele exista fora do mato, nos cartórios proteladores de luto, com profissão.

Sertanejo calejado, pouca posse. A maior era a chacrinha onde acabava a extensão informal da estrada. Depois da chacrinha, nem mais a informalidade era cabível. Nem o ar ventava no endereço do fim.

A fazenda vizinha onde eu pegava a kombi, permite-se chamar fazenda. Era a casa de Verônica, a menina que me dava uma surra por dia, todos os dias na hora da espera. A fazenda me impressionava porque tinha o gado todo branco, todo igual.

Havia máquinas que tiravam leite. Cada tentáculo mamava de uma teta de cada vaca da fileira que deve ter sido organizada pela professora da escola.

Havia lavoura de grãos, havia cilindros metálicos que eu imaginava prédios. Eles guardavam os grãos. A lavoura às vezes guardava vovô lá dentro, quando fazia algum trabalho.

Nos momentos de minha asfixia pelo ar, o nariz sangrava e avó conjurava com o sangue, xícara de porcelana e faca afiada, na porteira, algo que retirasse meu estrangulamento.

Um dia, com o som de meus pulmões afinando, lembrei da sandália. Conjurei algo e meses passaram chovendo sobre a lavoura da fazenda rica.

Verônica tinha cabelos sempre úmidos e eu jamais poderia ficar molhada. Tudo que me tocava era seco e as águas no quarto eram distantes.

Sonhava com inundações, alagamentos, imaginava o mar. Ainda assim, nunca aprendi a nadar.

O cavalo Roxinho era vermelho e poderia perder-se camuflado nos levantamentos de terra seca.

Conjurando algo que me curasse, sob orientações de vovó, subi em um cupim de terra, gritando o que ela mandava ao céu.

Nada me melhorou: permaneci sofrendo espancamentos, afogando em sono.

Buscava na televisão inspiração para pesadelos. Ouvia buzina de navio, som de onda, gaivota, peixes que saíam do mar. Achava mentira o mar, não existia, era cenográfico.

Mudei-me para o litoral.

Na praia, com os pés na água, sem saber nadar, uma onda abraçou minha perna, que tem hoje o tamanho do monte de milho que ia até o teto. Quando já salgada a perna, outra onda assaltou os quadris.

Já havia pouco pescoço além da superfície incansável, ininterrupta. Algum braço puxou o meu e voltei para areia, molhada, em asfixia.

Habitando a umidade, jamais aprenderei a nadar.

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