Mato

Juliana cajives
cajives
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2 min readApr 20, 2019

Conseguiu assento no ônibus que ia pra universidade. Assento daquele no alto, o preferido por sua memória afetiva de infância e pela memória odiosa do lugar mais baixo, o acessível para cotovelos e paus.

Riu da piranha que tirava da bolsa mudando de cor à luz do sol, abriu os dentes e pregou no coque do cabelo longo, castanho e quente. Enxugando o suor da nuca, ajeitou as coisas no colo enquanto via a cidade se transformar em pasto na ponta do ombro esquerdo. Janela de ônibus é coisa de quem não tem criatividade, pensava. Tentou pegar no sono para deixar a poesia para os piegas.

Curva brusca. Segurou no pau duro da frente, puxou sem querer os cabelos lisos, médios e frios que se deitavam no pau úmido de suor de nuca. A toada da viagem se mostrava na janela cheia de pasto verde. Lá fora se formava a imagem à luz dura dele sol.

Enquadrada sobre o ombro, no ônibus que aguardava sem vontade uma fila de estudantes de arquitetura o penetrarem, ela avistou. Uma única árvore em todo o pasto com duas únicas vacas pintadas de gato preto e branco. A vaca número um se coçava no tronco meio mole com os olhos fechados. Se mexia para frente e para trás com o rabo pra cima. A cabeça inclinada e boca semiaberta, expressando com gosto o esforço prazeroso do trabalho de alívio.

A vaca número dois observava. Parada, com a cabeça difícil de sustentar, tinha ombros humanos, invejosos. Orelhas baixas se mexiam para frente e para trás na toada ruminante. Olhos semiabertos, esperava. Com raiva da coceira somada.

Foram embora as vacas e ficaram os cinquenta estudantes de arquitetura se espremendo, quase chegando. Todos com seus cilindros enormes nas costas, pendurados. Quase chegando, o ônibus esvaziou-se de uma vez, desinchou.

Seu ponto, o próximo, ela por último. Aguardou o gemido do freio, levantou-se e desceu. O sol bem no centro repartido do cabelo, que se soltava dos dentes da piranha arranhando a nuca ventilada. O ônibus seguiu leve e feroz no suspiro do crescer das marchas, praguejando contra os expurgos.

O corpo, ainda guardando a vibração do motor, correu pelo gramado, subiu as escadas, voou pelos corredores. Na sorte da sala ainda vazia, desencapou o pincel do quadro lentamente pela ponta, o empurrou para fora do resto do plástico. Destampou e encontrou a ponta do dedo com a ponta molhada de azul.

Pela ponta do ombro esquerdo, a janela da sala se mexe para frente e para trás à sombra da árvore dura do lado de fora.

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