Meia maternidade e um pai inteiro
Como se olha para uma mulher que não conhece a possibilidade de apropriar-se de si?
Já produzi muitas coisas a partir desta experiência, em diversos formatos. No entanto, nada ainda me fez tornar público, embora eu quisesse, até este momento, em que o tema da redação do ENEM me estimulou a reler o que escrevi nesses onze anos, desde que atravessei aquela gravidez que não chegou ao fim esperado.
Eu estava com vinte anos e um namoro estável com um cara quase dez anos mais velho e que me fornecia o espaço confortável de seu quarto na casa dos pais para que eu fugisse da casa dos meus. Equipado com videogames, filmes e uma geladeira lotada por guloseimas, ele tinha o ambiente perfeito, com a família quase sempre viajando. Assim eu, quase sempre sem dinheiro e sem vontade de voltar para casa, me coloquei na cama dele como se fosse um retiro, um lugar que parecia cuidado.
Passávamos dias e noites trancados ali assistindo a comédias e explorando o sexo que eu podia entregar como retribuição. Desatenta ao meu corpo, cheguei ao dia em que o estômago não sustentava nada do que viesse daquela geladeira ou de qualquer outro lugar. Na cama dele, no banheiro dele, no caminho entre a cama e o banheiro, passei mal por mais de vinte e quatro horas até que ele foi à farmácia comprar um remédio. Passou pela minha cabeça nesse momento a possibilidade de estar… deixa pra lá, não tem como, não é isso não. Medicada, segui os dias e busquei um médico, relatei os sintomas e ele já insinuou que poderia ser… ah, não tem como ser, não é possível. Mas vamos fazer um exame só pra ter certeza.
O exame foi categórico: “mulher grávida”. Eu vestia um vestido florido esvoaçante e usava uma bolsa marrom com franjas. Coloquei o envelope na bolsa enquanto voltava a pé para casa do laboratório pensando que minha aparência juvenil e cor de pele branca, nunca haviam me permitido ser lida como mulher. Esse estatuto de mulheridade veio de técnicos que visualizaram o Beta HCG em meu sangue sem que vissem meu rosto ou meu corpo exageradamente magro, ou mesmo meu vestido com florzinhas. A palavra “mulher” só foi atribuída a mim ao lado da sentença de “grávida”.
A estimativa de semanas, que não me lembro direito qual era, me obrigava a administrar o tempo. Se optasse por interromper a gravidez, deveria buscar logo os meios e lidar com os riscos e, se quisesse manter, deveria tomar inúmeras decisões antes de contar para as pessoas. Dividi com o namorado todas as angústias e ele garantiu que apoiaria minha decisão, que seria companheiro. Comecei a planejar o dia de fazer o aborto e que seria em sua casa, mas ele tinha toda razão em dizer que não poderia ser ali, já que os pais não viajariam nas próximas semanas. E se acontecer algum problema?
Depois de muitas considerações, decidi manter a gestação e começamos a criar uma atmosfera de carinho em torno de tudo aquilo. Passamos pelo desafio de contar para nossas famílias e amigos, envolvemos as pessoas nas atualizações sobre meu estado de enjoos ininterruptos e idas ao médico. Enfrentamos filas de espera e pedidos de exames, planejamentos de onde morar, com que dinheiro fazer tudo o que precisava ser feito, o que comprar primeiro, subtrações em minha vida. Ele me alertou que não admitiria que, nos primeiros 5 anos da criança, eu a levasse a lugares barulhentos, então eu deveria aproveitar idas a bares, shoppings e shows o quanto antes. Fazia sentido, não era? Se a criança é mais dependente da mãe, então é ela quem deve ser o foco das subtrações.
Por algum motivo, eu sentia ali uma solidão enorme. Ele fez planos junto com a mãe e me avisou de como seria, ele decidiu comprar um videogame portátil como forma de me proporcionar uma diversão quando o bebê nascesse. Muito generoso, o pai do meu bebê que, sem exame atestando, seria injusto que fosse homem assim de surpresa, tão prematuro. Mas a ele coube definir que: eu passar a mão na barriga e sorrir ao ver os fogos do réveillon era ultrapassar um limite, mas falar de possíveis nomes era necessário.
Quando enfrentamos uma fila a mais para uma ultrassonografia de rotina, ele finalmente entrou comigo. Eu estava empolgada para que ele ouvisse os batimentos do bebê pela primeira vez e senti a introdução do aparelho de buscas me escavando. Silêncio. O médico insistiu por mais alguns minutos, mais silêncio. Parou e nos chamou a sentar para dizer “não se preocupe, isso acontece com muitas pessoas”. Ainda sem assimilar, apenas pensei em piadas envolvendo o aborto de um útero e o aborto de um pênis.
Vejam bem, minha família é de um lugar chamado Pau Baixo. Ouvir que uma coisa interrompida é muito comum deveria ser esperado por alguém cujo lugar de origem remete a brochamento. Eu teria brochado? Em seguida eu disse ao médico que o holocausto também aconteceu a muitas pessoas e isso não torna a situação menos dolorosa para cada uma delas. O namorado me olhou arregalado e chorando, saímos do consultório e nos abraçamos.
Meu médico tomou por mim uma decisão, já que em sua análise não seria seguro fazer uma curetagem, pois eu era muito jovem e isso poderia trazer sequelas que dificultariam uma futura gravidez, que ele garantiu que eu viria a desejar. Então comandou que eu ficasse com o bebê morto dentro de mim por um mês, esse era o tempo seguro antes de complicações, aguardando meu corpo fazer algo e, se não fizesse, eu iria para o centro cirúrgico.
Aquele mês ainda é um borrão na minha memória, mas eu sei que tem gente que me odeia até hoje por eu ter me comportado feito uma louca, carente, attention whore ou algo assim. Lembro que escrevi alguns roteiros, poesias e acumulei xícaras de chá sujas na estante de livros do meu quarto. Acompanhei o namorado em festas, bares, risadas com amigos e fiquei bêbada, falei alto. A minha magreza foi bem aproveitada por amigos que faziam o curso de moda e me usaram como modelo. Meu corpo não fez nada, não expulsou nada.
Minha mãe, por vezes rígida e por outras bem humorada, me levou para a maternidade de madrugada. O procedimento consistia em induzir um parto para que, no centro cirúrgico, fizessem uma sucção e limpassem o que havia sobrado das contrações e da bolsa que estourou. Isso levou um dia inteiro dentro do quarto, graças a um bom plano de saúde pago por minha mãe.
Além da minha cama, o quarto tinha uma TV na parede com acesso a canais pagos, um sofá e algumas cadeiras de plástico. Eu não queria ver televisão e fiquei falando com o namorado pelo celular enquanto ele, a cada vinte minutos, dizia que chegaria em vinte minutos. Ele estava sendo levado pela mãe, uma senhora da classe alta, que julga os cheiros e poeiras das coisas e adora dirigir. Estava preocupada comigo, mas em primeiro lugar com seu menino tão jovem para estar passando por aquilo. Eles chegaram. Ela se sentou para conversar trivialidades com minha mãe e ele veio ao meu lado.
Uma das muitas formas em que eu escrevi esta história foi a comédia. O bebê provavelmente fora concebido ao som de alguma sitcom e perdido aos ecos de piadas que ressoavam em mim. Então, se perdoe se você rir do que segue, tudo bem? Tudo bem.
Ele se sentou ao meu lado e não disse nada, alcançou o controle remoto para ver o que estava passando na TV. Configurou-se a cena do meu aborto: minha mãe e minha sogra conversando ao fundo sobre o clima e as risadas do pai do meu filho se confundindo com as claquetes de risos da série “Two and a half men”. A cena teve a duração de um episódio completo da série, pois me lembro deles me desejando melhoras durante os créditos. A porta ainda aberta, “Charlie Sheen” escrito na tela, ele me dizendo boa sorte, a logo da Warner Bros. e a porta se fechando. Fim da visita.
O título da série considera que os dois personagens adultos são homens completos, já que a criança seria o homem pela metade. Um dos personagens é o pai do menino, o pai que é o homem bom. Mas ele é bom apenas por ser o que é ou por não ser o que o irmão, boêmio e mulherengo, não é? São eles completos, pois são imunes às carências e loucuras das mulheres que os rodeiam? A abertura da série repete “manly man” e introduz toda a comicidade do que é ser um homem (masculino homem) rodeado por uma massa amorfa de mulheres tão parecidas entre si, que desaparecem.
Enquanto eu era espectadora daquela cena, tive vontade de falar, gritar, chamar a atenção, como quem assiste a um filme de terror. Mas ali parecia ter uma quarta parede tão sólida que me prendia à plateia, me jogava no escuro para me possibilitar enxergar o que acontecia onde havia iluminação. Detive-me a sustentar a educação teatral do silêncio e responder com cortesias às despedidas frias. Um dos protagonistas foi embora cedo, deixando ali minha mãe, a coadjuvante que ficou presente do início ao fim.
Uma semana depois, já era carnaval e fui com o meu rapaz e sua família para uma cidade vizinha. Fingíamos que nada havia acontecido e eu, recém saída de um procedimento cirúrgico, estava acompanhada de um dos nossos amigos que era médico e alertou baixinho do risco da chuva que eu estava pegando ali na rua. Todos os amigos disseram que era mais seguro que eu voltasse para a casa. Disseram que era mais seguro que eu voltasse. Que eu voltasse e eles ficassem.
O namorado achava um saco quando eu cobrava ou mostrava a ele que algo poderia ser feito de uma melhor maneira. Nenhum papel o chamou de homem ao lado de um filho, mas o exame que já não atesta minha gravidez ainda se mantém me chamando de mulher: parte não identificada da massa amorfa que passou a persegui-lo com loucura.
Mantive-me junto a ele ainda por um tempo após isso, ainda fugindo de casa. Em casa, havia um homem doente, com câncer, já debilitado, sendo cuidado por minha mãe. Era um padrasto que fora forçado em mim como pai, uma pessoa que precisava da atenção da esposa aos cuidados com o corpo frágil e com a mente enfraquecida. Ainda exercia uma força absurda, atraindo para si a mulher que o tratava e dispersando as que pulverizavam sua atmosfera com a loucura.
Para que um homem seja inteiro basta que em sua vida haja mulheres, sejam elas pequenos diabos que necessitam de sua luz ou elas mesmas a luz de que ele precisa. Eu fui uma mãe interrompida, meio-mãe. Mas ele já era inteiramente um pai, pois já era inteiro e nada precisava acrescentar para que fosse suficiente em seu mundo, com ou sem o filho.