o bigodinho de hitler
um cartaz de depilação me contou uma história, ou: como as imagens contam histórias para as crianças?
“Sob a fotografia de um ser humano, sua história se encontra como se estivesse enterrada embaixo de uma camada de neve”
Siegfried Kracauer
comecei a escrever este texto de supetão e entre parágrafos e pesquisas, o Google me mostrou uma infinidade de matérias, de tantas e tantas datas diferentes, em portais de todo assunto questionando se os homens ainda gostam ou não do bigodinho de hitler. me pareceu que de tempos em tempos a gente tem que checar se já temos permissão para abolir o hábito ou se ainda temos que nos doer no hábito. as matérias estão lá e periodicamente irão se renovar para verificar se a imagem ainda sobrevive pesando sobre a liberdade, como quem não quer nada de mal. afinal, a qualquer imagem é possível o esvaziamento, então já não importa mais qual nome está ligado ao modelo de depilação, se ela se mantiver na tarefa do hábito.
em minha ilha de edição da vida (a descrição de memória que mantenho em mim desde que conheci waly salomão), me lembro de ter ouvido falar o nome ‘Hitler’ antes de ter aulas de História na escola. o nome chegou até mim pela rua de casa mesmo, no banner de depilação colocado no portão de casa da vizinha que depilava em domicílio — no dela ou de clientes. no cardápio de estilos, havia o “bigodinho de hitler” e, sem nem saber pronunciar a palavra, perguntei a minha irmã mais velha o que significava aquilo, ao que ela respondeu dizendo “é o nome de um homem muito mau”.
naquele tempo, os homens maus se apresentavam com evidência para mim mais em ficção do que, por exemplo, na figura paterna horrenda que eu tinha. os homens maus habitavam contos de fadas, desenhos animados e filmes infantis como caçadores, vilões, sequestradores de princesas, servos a mando de mulheres más. esse tal de Hitler foi colocado na mesma caixa dos contos de fadas em minha cabeça. e, morando por lá, ele foi para um mundo de fantasia, do qual muitas vezes eu tinha medo ou crença, mas sabia no fundo que não existia. o mundo das histórias, para o bem, era inofensivo; para o mal, não existia. claro que, também, jamais esse homem mau seria tão mau assim na possibilidade de realidade em que ele fosse existir, já que seu nome estava ao lado de uma palavra no diminutivo, uma característica de tantas pessoas comuns, dita de um jeito infantilizado como qualquer coisa que colocamos em diminutivo para falar com crianças.
essa narração, hora deleuzianamente cristalina, hora orgânica, me faz pensar na criação desse homem fictício, monstruoso, que dando nome a uma tortura banal, agigantou-se na pequeneza da vida cotidiana de uma cidade jovem, sem asfalto, no meio do terceiro mundo. para povoar o imaginário coletivo a ponto de habitar o real de uma maneira tão fictícia, o nome de Hitler e seu acessório simbólico sobre o lábio ele percorreu em esporos numa fertilização do falso. então terminamos com uma forma positiva da fábula, que concede a nós o poder de esvaziar pelos ares uma figura gigante e a forma negativa da fábula, que faz escapar de nossas mãos e memórias a potência do horror. diz Deleuze:
“O que se opõe a ficção não é o real, não é a verdade que é sempre dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro” (p. 183)
assim o fez Chaplin, fabulando na ficção um homem mau e real. aproveitando-se do símbolo que compartilhava com Hitler, Chaplin nos mostra que o monstro era tão gente quanto ele e representa O Grande Ditador e um barbeiro judeu. o bigode se torna um disfarce para que o barbeiro escape da persguição antissemita e se passe pelo ditador, assumindo sua figura, sua imagem, mas rasurando seu discurso fascista. a imagem que o filme deixa afinal é a reiteração da ficção, o que torna seguro o pacto ficcional de vermos um Hitler/Hynkel dizer: “o sofrimento que está agora entre nós é só a passagem da ganância, o amargor do homem que teme o progresso humano. O ódio do homem passará e os ditadores morrerão (…) enquanto o homem morrer, a liberdade nunca se acabará”.
mas por que então não foi Chaplin quem se tornou o título do estilo de depilação mais popular da minha geração? aqui, expresso dois alívios: 1) a coerência de que uma prática dolorosa e inventada pela lógica patriarcal para sustentar a feminilidade tenha levado o nome de um ditador e não de um artista e 2) que esse nome tenha caído em desuso e espero que a prática também esteja. como um signo nunca está desacompanhado de história, ainda que sua des-historicização faça parte de um projeto amplo de poderes, a narrativa desse nome me fascina. o nome foi retirado do título (ainda bem) da prática, mas a prática ainda persiste, mesmo que debatida, problematizada, reapropriada. e como a história que acompanha os signos nunca se faz sozinha, por fábula, a prática e o nome só podem ser rasurados por meio da práxis.
mais embaixo no buraco, as leituras polissêmicas são uma bagagem que a história carrega, sendo ela própria, a história, uma bagagem carregada pelas imagens. mas a síntese da imagem pode “abolir o tempo e o espaço” (Robin, 2016). em minha leitura da carga simbólica da nome da depilação, há o meu sentido, mas ele não é uma totalidade real, já que esse título não exerce uma memória historicizada e mais serve para recorrer ao imaginário coletivo da imagem de Hitler cristalizada como mera ferramenta de referência visual. assim, Régine Robin diz: “Memória-mídia ou ‘memória da forma que se lembra’? Temos sempre que lidar com a decomposição do tempo; tratando-se ainda de possibilidades e impossibilidades da anamnese”. Então, quando se iniciará a infinitude da liberdade, como Chaplin propõe, inaugurada pela morte do homem se a imagem sobrevive?
“A sobrevivência segundo Warburg não nos oferece nenhuma possibilidade de simplificar a história: impõe uma desorientação temível para qualquer veleidade de periodização. É uma ideia transversal a qualquer recorte cronológico. Descreve um outro tempo. Assim, desorienta, abre, torna mais complexa a história. Numa palavra, ela a anacroniza” (Didi-Huberman, P.69)
a história (não somente a disciplina escolar, mas também) é quem inaugura conceitos e significados na compreensão inicial da vida. mais uma vez, não é a entidade mítica da história, mas é como ela ganha contornos por quem a conta (aqui não é a minha irmã, mas é como ela foi ensinada a contar). quando nasci, não haveria como elaborar nem mesmo o conceito de figura paterna, de homem bom ou mau. em estórias, a maldade se apresentou para mim e me ensinou a reconhecê-la e rotulá-la, como acontece no processo de desenvolvimento descrito por Vygotsky em “A construção do pensamento e da linguagem”. dessa forma, o homem real e mau se fez em meu imaginário através da ficção e dos “cuidados” de senso comum cristão em não se apresentar o horror explicitado a uma criança, então Hitler, em minha primeira conceitualização, era como o Gastão de “A bela e a fera”. e na ambivalência da repetição incessante, esse mal que se fragmentou também ganhou tamanho como ícone e, como ícone, passou a representar apenas a si mesmo, a uma única figura, como se nenhum outro mal de seu tamanho pudesse existir.
tomando aqui a liberdade de generalizar, baseada na capilarização do horror pelos entremeios da banalidade, atrevo-me a dizer que os símbolos do fascismo tenham sido apresentados a cada pessoa de formas muito parecidas com a que veio a mim. então, é razoável perceber como a re-ascensão do fascismo se construiu na sua giganteza dentro das miudezas de uma tarde quente, numa rua sem asfalto, em frente à casa de Toinha, na cidade-criança-esponja, de Palmas-TO. essas miudezas estiveram em cidades velhas e cidades novas, em ruas de terra ou com piche, no portão de qualquer vizinha ou salão de beleza. essas miudezas se repetiram a cada puxada de cera e a cada matéria de revista que investigava se os homens ainda gostam ou não do bigodinho de hitler (qual será o homem que precisa morrer para que nasça a liberdade, Chaplin?). é transitando entre o gigante e o minúsculo que a imagem de Hitler é, hora tão corriqueira e superada, hora tão colossal que se findou nele próprio. é com esse jogo que, sem medo de um novo monstro, nós convivemos com tantos.
se é de um jeito inofensivo que o mal provoca feridas e se é mantendo-o monstruoso em fábulas que a gente se afilia a ele, então qual é a dimensão de horror de se mostrar o horror a uma criança? se o nome do terror está estampado nos muros do bairro e num medo que guardamos em silêncio para não assustar aquelas a quem nós, adultos, atribuímos os conceitos de inocência; por que o medo infantil não deve ter terreno no real? carol almeida, em sua análise do filme “zona de interesse”, descreve o papel das fábulas no jogo das imagens:
“As fábulas infantis, aquelas mais tradicionais, costumam ser povoadas de violência extrema como um exercício de primeiro contato da infância com noções da radicalidade do viver.” (Carol Almeida)
qual horror é apropriado para crianças e quais crianças são apropriadas ao horror? em “Zona de interesse”, a justiça se apresenta pela violência na fábula contada às crianças e vemos a imagem da vida pacífica da família nazista ser entrecortada por uma espécie de fábula do real, que não está contida nas palavras de adultos e crianças e sim na imagem que sabota as cenas de prosperidade da família.
há, no código penal alemão, a restrição de uso de imagens e símbolos que fizerem alusão ao nazismo, bem como o negacionismo do holocausto. em 2016, uma salão de beleza na Bavária, anunciou sua campanha de combate à extrema-direita em que eram distribuídos panfletos com o rosto de hitler e uma fita plástica sobre o bigode feita para ser puxada e retirar do rosto o seu marcador mais popular. os cartazes anunciavam que a cada bigode retirado, um euro seria doado a uma organização de combate à extrema-direita. a cabeleleira ursula gresser abre seu site em tom de fábula:
“Era uma vez um salão de cabeleireiros em algum lugar da Baviera com o belo slogan: Uma alma rebelde. Um coração bávaro. A proprietária estava cheia de ouvir belas palavras. Ela queria agir. Contra a xenofobia e o racismo”
ursula não negou que a campanha a ajudou nos negócios, ainda que tenha sido idealizada em resposta às crescentes manifestações de extrema-direita em meio à crise imigratória. houve o uso da lei pelas autoridades, na tentativa de proibir uma campanha que usava a imagem do ditador, como se ursula estivesse fazendo apologia e não uma crítica. foi isso o que ocorreu também a roger waters um tempo depois, quando ele performou uma cena nazista em seu show, evidentemente colocando-a em tensão crítica. ursula só deixou de ser investigada quando retirou as imagens de circulação.
mas a quem pertence a história? a quem devem pertencer as imagens da história? a campanha contém o slogan “faça o mundo mais bonito” abaixo do rosto de hitler, convidando-nos a embelezar o mundo retirando dele o elemento que faz a imagem. ainda não fiz minhas certezas sobre essa campanha de lógica publicitária e empresarial, mas de fato, a fabulação promovida ali nos oferece o poder de uma nova produção simbólica, ainda que em uma repetição e talvez em uma ingenuidade. ainda que estampando aquele rosto, apresenta um novo rosto, uma nova aproximação e possibilidade de apresentação da história para crianças.
diante de disputas por significantes, a proteção de crianças é um território sempre em conflito. a extrema direita, em posse do senso comum, deseja impor o conservadorismo por meio dos símbolos de pureza e inocência em debates acerca de direito sexual e reprodutivo. as imagens amplamente repetidas servem para a criação da verdade e essa verdade, em poder do Poder, será a referência a que pessoas como Damares Alves recorrem para ilustrar as crianças que merecem proteção. a criança ao lado do conceito de pureza, a criança que será poupada do horror real, é uma semelhança dessa imagem-conceito-imaginação a partir da qual todos os campos de disputa se organizam para sequestrar os símbolos, a mando do lado que detém os poderes de construção simbólica (Thompson, P.199).
se é verdade que crianças são sujeitos do presente, então é necessário um esforço para romper com a investida de retirar das imagens das crianças o seu tempo e sua história. as imagens de horror entrecortadas com memes na timeline do Twitter (eu me recuso, eu me recuso a você-sabe-o-que) têm, com cada vez mais frequência, envolvido crianças e bebês. essas imagens vêm do genocídio em curso perpetrado pelo ilegítimo estado de israel ao povo palestino. com uma população extremamente jovem, por conta da baixíssima expectativa de vida, as crianças palestinas estão em massa vivendo o horror e morrendo por meio dele. o horror se apresenta a essas crianças no território do real, despejando os conceitos de maldade antes mesmo que a elas seja entregue uma imagem onde depositá-los.
“Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente, para não dizer olhem o que eles fizeram então, mas sim o que faça agora. Nosso filme mostra onde a desumanização leva ao pior. Ela moldou todo o nosso passado e presente.”
a compreensão, em linguagem, do que é um holocausto fica imposta às crianças palestinas que estão dentro das imagens de horror apresentadas a nós entremeadas no banal das miudezas. a imagem da criança legitimada pelos discursos da proteção à infância retira da humanidade todas as crianças que não habitem essa imagem e retira do real, coloca num lugar sublime, as imagens de crianças que sofrem com os horrores causados por Israel, que encampa a si unicamente o holocausto. o significado de holocausto esteve jogado entre o banal, a palavra da disputa e a imagem do horror nas redes sociais quando o diretor de “Zona de interesse”, Jonathan Glazer, afirmou em seu discurso na cerimônia do Oscar deste ano, que não aceitaria sua “judeidade e o holocausto serem sequestrados por uma ocupação que causou conflito para tantas pessoas inocentes”. no discurso, jonathan fala dos perigos da desumanização do outro e enfatiza que o filme contém “o que fazemos uns aos outros como seres humanos”.
trazer para a humanidade tanto o monstro, como fez Chaplin, quanto sua vítima, como fez Glazer em seu discurso, deixa evidente que o tamanho da maldade é o tamanho de um homem que partilha algo com sua vítima. a recusa da partilha é parte do sequestro de linguagem, mas isso não a retira do campo do real. o holocausto não deve ser sequestrado pela narrativa de Israel porque ele é o nome do horror que Israel impõe como prática e retira como palavra do povo palestino.
mas, como pensar o tempo presente e futuro se, no processo de desenvolvimento da linguagem, os lugares do horror e do real são habitados desigualmente por monstros e humanos dentro das maneiras desiguais com que as crianças conseguem se relacionar com a imagem? eu, vendo todos os dias o nome de hitler como qualquer coisa foi algo que aconteceu num momento em que eu era presente, sujeito do presente. no entanto, ali foi colocado em minhas mãos um futuro do qual faço parte como adulta no presente de hoje, com a responsabilidade de não me alienar do espanto diante do horror. fico pensando em como os conceitos mudam em nosso olhar na medida do tempo porque é no tempo que percorremos entre lugares e relações e a cada lugar e relação, inauguramos um novo tempo possível para percorrer. e é essa a autonomia, a de percorrer no tempo, que deve ser direito garantido às crianças: vivas.
Almeida, Carol. In: https://foradequadro.com/2024/04/09/the-zone-of-interest-by-jonathan-glazer/
Deleuze, Gilles. A imagem-tempo. Brasiliense, São Paulo, 2005.
DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
Glazer, Jonathan.
Manasi Gopalakrishnan. In: https://www.dw.com/en/waxing-hitlers-moustache-to-get-even-with-right-wing-racists/a-19233772;
ROBIN, Régine. A memória saturada. Tradução de Cristiane Pereira Dias, Greciely Costa. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2016. 500 p. ISBN 9788526813397 (broch.).
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 496 p. Título original:
Michliênie Rietch.
Wolf, Jana. In: https://www.mittelbayerische.de/archiv/1/friseurin-wirbt-mit-hitler-gegen-rechts-11349044