Alopatia?, prefiro não usar, de qualquer forma obrigado, Alexander Fleming

Relatos de um hipocondríaco (às avessas)

Robson Felix
Cala a Sua Boca e Pega Logo a Saideira!
11 min readAug 8, 2016

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Tenho uma coisa que vem de família, sou resistente ao uso de alopatia.

Nada muito teórico, mas prefiro não usar.

Como diz um amigo que, por gostar muito de chocolate, não passa nem perto do danado: eu não faço trato com o inimigo.

Em outra encarnação eu devo ter sido Testemunha de Jeová ou índio, sei lá.

Também não é uma questão de ignorância, não.

Sei que a medicina evoluiu muito nos últimos vinte, cinquenta anos, mas também sei que ainda ainda somos alvos fáceis de inimigos invisíveis.

Viver é uma impossibilidade, filosofo enquanto acendo e trago menos cinco minutos (não seriam horas?) de vida, segundo estudos politicamente corretos.

Também entendi que nos últimos cinquenta anos o lobby e o marketing do segmento farmacêutico evoluiu bastante.

Quero dizer com isso que a indústria farmacêutica também evoluiu pra caralho.

Ah, tá… talvez eu tenha uma teoria sobre a minha postura refratária à alopatia, sim: criamos doenças para vender curas.

Nada mau, humanos.

Mas, comigo, não, cara pálida.

Entendo a doença como algo maior do que vírus e bactérias.

Toda doença é holística.

Preciso investigar meus sentimentos.

INSTALAÇÃO COMPLETA

Sinto a doença se instalando.

Se é vírus ou bactéria, eu sei pelo aproach.

A instalação do software de cada inimigo é diferente.

Meu corpo parece feito de cacos de vidro, as antenas dos vírus aplicando seus programas de destruição em massa de tudo o que sou, o download já se iniciou, agora é contagem regressiva para eu abrir mão do meu curandeirismo caboclo.

A bactéria é mais fria. Se instala devagar. Na verdade ela já está aqui, dentro de mim. A safada convive comigo dia e noite fingindo ser um dos meus aliados.

A bactéria é o agente infiltrado no centro de controle inimigo (no caso, eu).

Só falta um pico descendente de minha imunidade para completar o download de seu programa que na verdade é um tutorial para me mostrar que eu também sou ela.

Porém ainda resisto à qualquer tipo de remédio.

Dos tipos que vendem em farmácia, então, nem pensar.

Se o meu estado geral não melhorar em três dias, eu tomo providências.

É o meu limite.

SEGUNDO DIA

Tive febre alta a noite toda e acordei vomitando.

Mau sinal.

Na verdade um péssimo sinal.

A notícia boa é que eu permaneço vivo.

Tudo bem, vamos lá, preciso reagir…

…quem sabe um comprimido de Multigripe não resolva (não sei bem o porquê mas, gosto desse remédio. Aliás sei, sim. Ele melhora a coisa da coriza, que é o sintoma mais irritante da gripe).

Dois reais e cinquenta por quatro comprimidos de Multigripe?!

Estou dois reais e cinquenta mais pobre ao comprar um remédio para algo que todo mundo sabe que não tem cura.

Olha o marketing da indústria farmacêutica aê, gente…

QUINTO DIA

Cinco dias e quatro comprimido de Multigripe depois, não sei avaliar se melhoro ou caminho em linha reta para a vida eterna, deixando meus restos mortais para quem precisar deles (se ainda não tiverem sido devorados por todo o tipo vírus e bactérias).

Essa é a fase mais perigosa do meu projeto “Cacique de Zara”, pois inclui a possibilidade da perda do contato com a realidade, e do seu real estado se saúde.

Todo projeto (um pouco mais) radical precisa ter um ponto de retorno, uma palavra de segurança, um sentimento de entrega à ideia de que (talvez, só talvez) você não esteja em pleno uso de suas faculdades (que a esta altura já deve estar mais para ensino fundamental) mentais.

Senão você pode dar o mole que aquele pastor (ou será padre? sei lá) deu ao (tentar) copiar a façanha de Jesus no deserto, recentemente.

O pobre religioso morreu no trigésimo de jejum.

E eu o entendo completamente, padre.

A ILUMINAÇÃO

Insisto, por puro prazer na dor.

Preciso me sentir vivo.

Um homem tosco, bronco, xucro, porém (ainda) vivo.

Entenda você que ao refutar a medicina dos homens eu me entrego ao divino…

Nomioronguékiôôôô (desculpaê, mas eu não sou fluente no mandarim)…

Faça de mim o que desejar energia suprema, força divina…

Eu não controlo nada…

Eu sou a luz…

Eu sou Deus…

Nada parece funcionar, talvez seja o caso de pensar em um despacho.

O BOTECO É A NOVA FARMÁCIA

Talvez tenha começado na infância.

Talvez, não.

Sim, a coisa dos chás e benzedeiras, sim.

Foi na infância, com certeza.

Depois instalei a minha farmacinha no boteco mesmo.

Dor de barriga? Toma Genebra. Um santo remédio.

Pode observar, ninguém pede Genebra (prima-irmã do Steinberger) por prazer.

Quem toma Genebra tá sempre com aquela cara de que tá se segurando pra cagar em casa.

Até de infecção intestinal (será? leve? talvez?) a danada já me salvou, acredita?

Peito encatarrado? Domeq com leite quente.

Outra “batata”.

Essa foi minha mãe que me ensinou.

SÉTIMO DIA

Ainda não consigo usar todo o potencial de meu corpo.

Sinto calor, frio, suo, choro por todas as células.

Acordei vomitando, de novo.

Isso não pode continuar assim, eu sou um ser pensante, pensei (vai com cacofonia mesmo, ok? o texto é meu, caralho... lê essa porra aê e cala a sua boca).

Preciso de ajuda profissional, mas não hoje.

Talvez amanhã…

…não, hoje.

Nem deitado encontro mais uma posição confortável (ah, e obrigado pra galera que torceu pelo sucesso de minha gambiarra de pobre no colchão de ar. Valeu, viu. Porém devo dizer que ele me venceu. E preciso acrescentar que foi de forma humilhante).

Me levanto, tonto, mas decidido em encarar a UPA da Siqueira Campos.

Um perto-longe.

Metrô, talvez?

Não, obrigado, muita gente.

Prefiro gastar minhas últimas reservas de energia indo a pé, mesmo.

Sétimo dia…

…se eu tivesse morrido, minha missa seria hoje, penso nisso enquanto deslizo pelas ruas alaranjadas.

Me esgueiro pelo carnaval maluco que se instalou na cidade maravilhosa.

O rei momo devia ser aquele atleta pelado, (solitário) representante de Tonga (da Mironga do Cabuletê?) e seu óleo de coco.

Nada contra, mas tô fugindo de aglomerações públicas.

Posso até ir em mega eventos, mas preciso de algum tipo de estrutura (leia-se mordomia).

Não topo mais passar perrengue, infelizmente.

Envelhecer deve ser isso.

Ou vai ver que não é isso, não.

Mas, talvez eu jamais descubra a real diferença entre a meia-idade e a velhice.

Tudo a mesma merda — ó, tá vendo aê? tô me pegando mais rabugento do que nunca. Isso é um sinal claro de envelhecimento. Não se surpreenda se eu começar a falar que no meu tempo é que as coisas eram boas. Não se faz mais televisão como antigamente? Claro, o mundo mudou. O celular é a nova tv, seu velho decrépito. E velho aqui não tem muito a ver com a idade, não… tenho amigos da minha idade que fazem muxoxo (ou será muchocho?) e tudo quando eu mostro algum vídeo retardado no YouTube.

“Ai, será que alguém vê isso?”

Oi?

São treze milhões de seguidores e trilhões de acessos.

Qual parte você não entendeu, seu merda?!

TUDO MUITO ESTRANHO

UPA vazia?

Estranho.

De qualquer forma, vim disposto à esperar.

Aquele atendimento VIP maravilhoso me aguarda.

Eu me sinto uma bolinha de pingue-pongue, nestas “paradas” públicas.

“Não, precisa passar nela primeiro.”

Olá, boa tarde pra você também, penso mas não falo.

A primeira moça só me pergunta o nome…

…e mesmo assim ERRA.

Uma voz metálica anuncia pelo alto falante da unidade de pronto atendimento, denunciando publicamente o erro da mulher com o cabelo cor de água de salsicha, quase quarenta minutos depois.

Disfarço minha irritação.

Finjo que não é comigo.

Me recuso a aceitar que aquele paciente Robson FELIZ sou eu.

Era.

Será que a moça foi minha colega de ginásio e quis me pegar uma peça com meu nome em homenagem aos velhos tempos de perseguição escolar, justamente nesse meu momento de extrema fraqueza?

O delírio da febre só aumenta a minha síndrome persecutória.

Melhor creditar o erro à incompetência da moça sem alma, mesmo.

A segunda moça só fez corrigir meu nome após eu quase implorar à primeira.

E para esbarrar com as duas moças eu só precisei esperar cinqüenta minutos?

Só meia dúzia de pessoas para serem atendidas?

Hoje será meu recorde no atendimento nesta UPA, pensei achando graça da minha própria piada sem graça.

Na última vez em que estive em uma UPA, fui atendido por um médico do trabalho que nem olhou na minha cara, após quase quatro horas esperando pela consulta.

Reclamei por escrito e deixei minha “nota de repudio” na caixa de sugestões da unidade (será que alguém ainda lê caixa de sugestões? Por que não enviar um e-mail?), mas foi logo no início do projeto.

TALVEZ MENOS

O delírio aumenta, enquanto aguardo minha vez para ser olhado por um médico de verdade e não por um monte de zumbis, à espera de seus pagamentos em forma de carne humana.

Agora me sobrevém uma vontade de esganar a mulher que errou meu nome.

Preciso me controlar.

A segunda mulher também seria esganada por mim, nessa minha fantasia delirante do tipo massacre da serra elétrica na UPA da Siqueira Campos.

Não.

Certamente, ela não seria poupada da serra elétrica.

Me fez de pingue-pongue, sabendo que a primeira mulher ia me sacanear.

Robson FELIZ?

Onde já se viu?

Logo eu que (filosoficamente) não acredito em felicidade.

E ela não imagina o quanto fui torturado com esse trocadilho de merda por toda a minha vida.

Ademais, estou em transe por causa da febre amarela e fora do meu juízo perfeito.

Qualquer advogado de merda me solta em duas horas.

Talvez menos.

GOOGLE

A voz metálica chama meu nome, já corrigido, justo na hora em que eu pesquisava no Google onde comprar uma serra elétrica em um domingo solar.

Cuido delas depois, conspirei mentalmente.

Dessa vez passarei por uma profissional de referência na medicina, delirei ardendo em febre.

Mas, a realidade consegue ser mais piegas do que a ficção, às vezes.

As mesmas perguntas que saboreio descrevendo detalhes do meu calvário para uma moça loira de jaleco azul.

“Tenho tudo anotado.”

Anotações mentais, penso mas não falo.

O fato é que sei quando estou com febre.

Meu corpo todo se acende.

Me sinto vivo, porém incapaz de viver.

A moça coloca um negócio no meu dedo.

Puro ato mecânico, sem reação facial.

Será que ela fez curso para operar esse negócio, penso curioso.

Era (mais) uma entrevista preliminar.

Uma hora e meia e eu já estou pela “bola da vez”…

Hoje deve ser mesmo o meu dia de sorte, apesar de ser o sétimo dia de minha morte.

Sim, não exagero.

A doença é um sinal de que algo não vai bem em nossa vida, dizem os orientais.

Preciso deixar que o velho EU morra para dar lugar ao novo, MELHORADO.

Talvez… mais o quê?

FELIZ?

Volto para minha cadeira disposto a achar uma loja aberta que venda serra elétrica no domingo nem que seja no Acre.

Por que será que chamam de serra-elétrica algo que funciona à diesel?

Questão de ordem do meu superego.

Sem resolver essa charada não tenho autorização de seguir em frente com meu plano de vingança contra a minha coleguinha de creche e sua corriola.

Ok, a moça da pré-entrevista eu deixaria de fora.

Será que existe preconceito na eleição do elenco do meu filme de terror?, penso assustado comigo mesmo.

Pois não é que tinha mesmo?

O MANTRA LILÁS

A voz metálica não erra mais meu nome.

Mesmo assim eu cuido de você depois, penso enquanto passo por minha amiga de berçário, sorriso forçado no rosto.

Procuro o número da sala que a voz metálica indica insistentemente, entre milhares de números.

Bato e entro, pedindo licença por existir.

Médico negro e jovem?...

…hummm, qualé a pegadinha?

João Kleber apareça!

Sobre a juventude, tenho a dizer o disse outro dia quando minha filha me questionou sobre o fato deu não saber o que eu fazer da vida aos quase cinquenta anos. Respondi algo em que acredito: o estranho é ela já saber, aos vinte.

Assim que entrei no consultório minhas esperanças de cura diminuíam, em minha mente.

O médico negro e jovem, parecia mais disposto a passar mensagens pelo whatsapp para a sua crush (é assim mesmo que se fala? no meu tempo — tô falando que tô velho — isso era um refrigerante).

Seria ele um forte candidato para atuar em minha fita campeã de bilheteria (e preconceituosa)?

“O massacre da serra elétrica movida à diesel na UPA da Siqueira Campos, que na verdade fica na Figueiredo Magalhães.”

Um bom nome.

Gosto de títulos grandes.

Eu venderia a película, via stream, por milhões de dólares para os pacientes que ao menos uma vez foram feitos de pingue-pongue por essa máquina de fazer loucos, esse protocolo hospitalar de merda que te faz passar por quatro conversas fiadas antes de perceberem que você está com uma faca enfiada no peito.

Pior do que isso só a sanha daquelas fitinhas irritantes que nos fazem de tontos em seus labirintos claustrofóbico de pessoas, como gado.

Tudo bem.

Respirei fundo.

Tentei mantrar o lilás.

Mantrei o fogo lilás sobre a minha cabeça.

Deu certo.

Em segundos ele (o médico) levantou os olhos do celular e me pergunto o que eu sentia.

Descrito os (mesmos) sintomas com (os mesmos) requintes de crueldade, ele olhou minha garganta com a lanterna de próprio celular (só com isso o moço já fez mais do que o seu colega, médico do trabalho, de minha experiência ruim) e pontuou: Amigdalite.

Ele me contou que eu precisava tomar um antibiótico.

Coisa pouca.

Dose única, falou.

Me contou que ele mesmo tinha acabado de tomar uma dose e que estava com dor na bunda, pois a coisa era intramuscular e era melhor tomar na bunda.

Eu gracejei alguma coisa sobre minha roupa de baixo.

“Se eu soubesse tinha vindo com uma cueca melhor”, bobagens desse tipo.

Percebi logo minha carência quando me vi alugando o moço, falando sobre assuntos diversos, como se estivéssemos em um bar.

Gostei dele, o moço era de verdade.

Falei de minha resistência alopática e ele pareceu respeitar, declinando o bloco de receitas.

Ao perceber que entreguei os pontos, ele ainda fez uma pergunta de segurança.

Posso receitar?, perguntou confirmando minha desistência do projeto “Cacique de Zara”, antes de rabiscar algo em seu papel timbrado.

A REVOLUÇÃO DA MEDICINA

Era alguma coisa em uma dose absurda de 1.200.000 de qualquer coisa que ele rabiscou na sua folha azul retangular.

Achei o número alto.

Um número daquele de qualquer coisa é muita coisa de qualquer coisa, retruquei.

“É o mais leve que tenho aqui”, disse o jovem médico negro, não segurando a piada.

Falamos um pouco mais sobre a cura.

Em tese, eu deveria ficar sem beber 21 dias, disse ele.

Gosto dessa liberdade poética: “ em tese”.

Quando é assim, em geral, obedeço.

Falamos um pouco mais, enquanto não vinha a minha “cervejinha” intramuscular.

Afinal, todo doente é, em si, um ser carente, você não acha (heim? fala comigo? não finge que não tá lendo, não. faz assim, comigo não…).

Ele reclamou de salários não pagos e eu ressaltei a revitalização do centro da cidade.

Não houve conflito de ideias.

Nos despedimos, eu já me sentindo curado.

Tive vergonha de pedir para ser seu amigo no face (aí já era carência demais).

Mas, vamos combinar que encontrar um jovem médico negro, de classe baixa, que à duras penas se formou em medicina, é algo raro.

Competente então, é a própria joia rara.

Deixei os meus preconceitos invertidos em seu consultório, ao fechar a porta atrás de mim.

Eu precisava me preparar para a cura.

Benzetacil 1.200.000

Oi?

Inventaram a Penicilina e ninguém me avisou, é isso mesmo produção?

De qualquer forma, vou ali morrer e já volto.

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