Quem nasceu para José jamais chegará a João

Por ocasião da comemoração (em silêncio, como têm de ser) dos 85 anos de João Gilberto

Robson Felix
Cala a Sua Boca e Pega Logo a Saideira!
4 min readJun 10, 2016

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Bebel e João Gilberto — Foto: Instragram

Eu fico pensando… quem autorizou João Gilberto a ser João Gilberto?

Eu ouço histórias deste grande personagem da bossa-nova desde de criança e ao que me parece ele nunca teve dúvidas de ser o principal herdeiro do reinado do silêncio,onde imperam aquelas suas pequenas incursões vocais que apenas arranham o silêncio, que são o seu registro, junto com o perfeccionismo, o ouvido absoluto, o recolhimento, a administração da escassez de sua voz no mundo (não quero me debater com quem tem propriedade para questionar as qualidades musicais deste gênio da música, a ideia não é essa, e sim discutir a lenda que se formou em torno dele).

Não tive ainda a possibilidade de ler uma biografia sequer deste personagem que hoje comemora 85 anos (nem sei se existe alguma), mas o que me parece em sua trajetória de vida é que ele nunca teve dúvidas de quem ele é.

É pura especulação, claro, nenhum fundamento a não ser as histórias que ouço (e são hilárias).

Algumas foram relatadas no livro do biógrafo (rejeitado) de Roberto Carlos, todas situações positivas, vale o registro — a que mais me impressionou foi a que João Gilberto promete ingressos para o próximo show que fizesse na Bahia para o biógrafo e seu pai (que se dizia seu grande fã). Passados seis meses ele ligou para o biógrafo oferecendo não só os ingressos, mas também o convidou para um jantar após o show. Quer dizer, relatos de um João Gilberto fofo.

Mas, as histórias que eu mais gosto dão conta de um João Gilberto mais malvado, quase autista… desligado, destacado da multidão, isolado com sua arte, recatado, quase um tratante (vem daí toda a minha curiosidade sobre em como ele nunca duvidou da sua genialidade, ou melhor, como ele fez todos acreditarem nisso).

Essa história aconteceu, por exemplo (segundo fontes) com a Elba Ramalho.

Eles haviam acabado de chegar de viagem, estavam (Elba e João) no mesmo hotel, pois iriam participar de um grande evento no dia seguinte.

Logo que Elba entra no quarto, tarde da noite, o telefone toca.

Era João:

— querida você teria, por acaso, teria um baralho aí na sua mala de viagem?

— deixa eu ver aqui, João… eu já te retorno.

Elba ficou nervosíssima, extasiada. João Gilberto queria jogar uma partidinha de baralho com ela?

Quanta honraria.

Mas, e o baralho?

Imagina se ela viajaria com um baralho na mala.

Elba pensou rápido e ligou para o concierge e explicou a sua situação — ele teria que dar um jeito, pensou, pois se tratava do grande João Gilberto.

O pobre do homem deu lá o seu jeito e mandou entregar o bendito do baralho (na verdade dois, de cores diferentes, segundo fontes) no quarto da Elba Ramalho (até rimou), que retornou a ligação para João Gilberto (ainda extasiada) mas, com a missão cumprida:

— olha João, por acaso eu tenho um baralho na mala… um, não… dois… [risos]

— você poderia trazê-los aqui para mim, querida?

— claro, João… será um prazer.

E lá subiu Elba, toda feliz e serelepe, para a suite presidencial… já pensando na melhor forma de deixar João ganhar (seja lá o que fossem jogar), sem ofendê-lo.

Elba toca a campainha do quarto da estrela maior da música brasileira:

— Elba é você? — diz ele, sem abrir a porta

— sim, João… trouxe o seu baralho.

— ah, obrigado, querida — diz ele

[Paula intelectual]

— você poderia passá-los por debaixo da porta, por favor, querida?

Pois é?

É disso que eu estou falando…

…quem o autorizou João Gilberto a ser (tão) João Gilberto, assim… de repente?

Essa petulância (despretensiosa) tão característica de João Gilberto (a lenda) é a que eu mais gosto neste personagem mítico da música brasileira.

Eu fico pensando como ele, com seu refinamento, passa os seus dias… alimentando o seu ouvido absoluto, suas imagens musicais de abstração e silêncio.

Será que a imagem verdadeira de João Gilberto é a que o Paulo Cesar Araújo nos revela em O Réu e o Rei (o fofo), ou essa da Elba Ramalho (o sádico)?

Eu prefiro a imagem da Elba, mas não importa.

Feliz aniversário, João Gilberto!

Parabéns pelos seus oitenta e cinco anos de histórias.

Parabéns, também, por ser quem você é e compartilhar com a gente a sua genialidade.

Seja lá na versão “fofa” ou na versão Elba.

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