Órfã 2 e a fé na imagem

Calebe Lopes
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5 min readSep 22, 2022

Cinema puro e simples

“A Órfã”, filme de 2009 dirigido pelo bravíssimo Jaume Collet-Serra, é daqueles filmes que adentram o imaginário do público sem necessariamente se fincar na história do gênero. Não sei bem ao certo quando o filme ficou tão querido, mas se tem uma coisa de inegável é o envolvente caráter Supercine de sua trama, thriller barato com revelação chocante ao final que ainda tinha em sua receita infalível a presença de uma criança encapetada, vivida pela igualmente endiabrada Isabelle Fuhrman, na época das gravações com 10 anos de idade.

Pois bem, 13 anos depois estreia nos cinemas (agora sem artigo à frente do título) “Órfã 2 — A Origem”, dirigido pelo William Brent Bell, um daqueles diretores competentes do cinema de horror hollywoodiano que geralmente passam por baixo do radar porque nunca fazem algo substancialmente autoral.

O filme de Serra acompanhava Esther, essa criança esquisita que era adotada por um casal e passava a desencadear uma série de situações violentas e estranhamente sexuais, se revelando ao final uma mulher de 30 anos com uma singularidade genética bastante rara que a fazia ter a aparência de uma criança de 9 anos. O de William Brent Bell tenta imaginar como essa personagem parou no lar de adoção do primeiro filme, criando uma história maliciosa que, segundo contam os burburinhos da equipe criativa, mira nos thrillers familiares de Claude Chabrol — com ecos também, naturalmente, de A Profecia (1976), de Richard Donner, outro filme sobre criança esquisita chegando pra bagunçar a vida de gente rica.

Ou seja, em um mundo onde o público parece, estranhamente, querer cada vez mais verossimilhança, lógica extradiegética e tem nítidos problemas com suspensão da descrença, Bell pega aqui a bucha de canhão de, uma década depois, retornar ao universo de sua personagem contando uma história anterior à do primeiro filme. Se no de 2009 Fuhrman tinha 10 anos e interpretava Esther, a garota que aparenta ter 9, fica difícil imaginar como uma atriz de 23 vai interpretar a criança ainda mais nova nessa prequel. É aí que entra a beleza da coisa toda.

Se alinhando a uma belíssima tradição de cinema B de partir de uma trama absurda para lidar com ela de um jeito realista (como nos filmes de Brian De Palma, Tom Holland, ou mais recentemente François Ozon e James Wan), Brent Bell — que já tem no currículo belos filmes vagabundos como Boneco do Mal e Boneco do Mal 2 — abraça a limitação como força motriz, colocando à disposição de sua encenação a boa e cada vez mais rara linguagem do cinema, vejam só.

Nada de maquiagem digital ou personagem criado por computador. Aqui é só montagem auxiliada por um trabalho primoroso de continuidade, boa escolha de lentes e ângulos e outros recursos criativos (tipo colocar todo mundo menos Fuhrman utilizando sapatos com plataformas altíssimas para criar distinção entre as alturas). O resultado não é a ilusão, mas um convite ao espectador para que participe desse jogo de faz-de-conta.

A aparência da protagonista no filme de 2009 condiz com o necessário para que seu plot twist funcione. Aqui, já dada a carta de quem é Esther, o que interessa é outro tipo de engano, privilegiado pela aparência de Fuhrman, que agora que não precisa parecer uma criança, soa mais perturbadora a cada corte para um plano que revela sua dublê (essa sim, criança) de costas, nos obrigando a montar com a mente a quimera ocultada pelo jogo de câmera. Isso tudo vem acompanhado de planos que sempre escondem a personagem, seja por enquadramento, seja pelo uso criativo de reflexos, seja pelas camadas que cria ao colocar objetos desfocados em primeiro plano.

Em um filme sobre encenação e farsa, sobre jogos de poder, tensões de classe, desejo e aparência, quem assistir Órfã 2 será convidado a um pacto junto com os personagens, acompanhando uma trama que nunca tem medo de soar cafona, auxiliada por uma imagem muito significativa pensada pelo sempre criativo Karim Hussain, que aqui enche o quadro de blur através de lentes antigas, tirando a nitidez e adicionando glow à luz em cena sem marcar muito as sombras, deixando tudo com um aspecto de soft focus. O resultado parece refletir a natureza opaca dos personagens, num visual que, de alguma forma, me remeteu a alguns trabalhos de Sokurov. Tudo ali parece sonho, em contraste com a violência e a sujeira varrida para debaixo do tapete.

A imagem impulsiona um texto que sabe ser cruel e igualmente engraçado, num tipo de humor sombrio que perpassa pela ironia das situações, pela escolha das músicas (e por sua inclinação pop) e até por um humor mais pastelão (tudo que envolve a prótese dentária é ótimo). É um filme autoconsciente, afinal. A boa e velha brincadeira do cinema, onde eu finjo que conto a verdade e você finge que acredita. Um exercício de fé tanto dos realizadores quanto do público, como geralmente é o bom cinema do gênero.

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