A Arma de Plástico

Calebe Lopes
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6 min readNov 2, 2018

Reflexões sobre a suspensão da descrença no cinema independente

O cinema independente, de guerrilha, sem dinheiro, enfrenta dificuldades muito naturais para a sua condição de existir. As limitações estão intrínsecas ao formato e às formas de produção, de modo que o grande desafio do cinema feito sem grana hoje, no Brasil, é o de obter um valor de produção maior ao que realmente lhe apetece.

Um dos melhores elogios aos meus filmes, daqueles que me tiram um sorriso enorme, é quando alguém pergunta quanto custaram e, após a resposta, diz “poxa, nem parece que custou só isso”. Esse valor de produção é importante não apenas por uma questão qualitativa, mas também pela suspensão da descrença.

A suspensão da descrença é um acordo voluntário que o espectador estabelece com uma obra de arte a fim de aceitar como verdadeiras todas as afirmações que a obra te fizer. Exemplo: as acrobacias impossíveis e situações inverossímeis que o Ethan Hunt é colocado na franquia Missão: Impossível. Ou, até mesmo, uma fantasia, como O Senhor dos Anéis, cheia de monstros e acontecimentos mágicos. Para que o espectador se envolva com os personagens e seus conflitos, para que a experiência estética ocorra de maneira plena, é necessário esse acordo. O cineasta conta uma mentira fingindo ser verdade e o espectador finge que acredita.

A manutenção da suspensão da descrença é um dos maiores desafios de um filme sem dinheiro, principalmente se o mesmo for de gênero. Toda a mise-en-scène de um filme precisa colaborar para a credibilidade daquele universo, e quando um filme sem dinheiro esbarra nessa condição, começam os problemas. Motivado por essa preocupação é que acabei desenvolvendo esse conceito da Arma de Plástico, com base no elemento homônimo responsável por naufragar muitas produções de guerrilha.

Tomando como exemplo a própria arma de plástico, já perdi as contas de quantos filmes sem financiamento que vi — seja de ação, terror, drama, etc — que se apoiam dramaticamente na existência dessa arma e sofrem quase que um autosabotamento dramatúrgico porque é quase que impossível do espectador comprar que aquela arma é verdadeira — logo, representaria uma ameaça real.

Se Noël Carroll fala que o espectador só irá vivenciar aquilo que conseguir acreditar no que vê/lê, Murray Smith nos diz que a capacidade que se tem de “entrar” numa história de cinema não é ilusão, não é sonho, mas é a aptidão que o espectador tem de se colocar num lugar de imaginação. Imaginar que aquilo é real não te impede de ter um distanciamento crítico a ponto de continuar sabendo que aquilo é um filme, mas te permite sentir as dores dos personagens, por exemplo, sem grandes riscos. É, verdadeiramente, um pacto conjunto de imaginação entre filme e público.

Logo, se torna muito mais difícil pro espectador imaginar os perigos reais do protagonista ter uma arma apontada para a sua cabeça se a mesma for, claramente, de plástico. É dever do realizador colaborar o máximo possível para a suspensão da descrença em seus filmes, tendo uma atenção especial, nesse caso, para as possíveis leituras que seus elementos que mais exigem a suspensão podem suscitar.

Retomando para o exemplo da arma, se é difícil encontrar um revólver “de verdade” e seguro ou algum prop crível e a única saída encontrada para cumprir o que se coloca no roteiro é um revólver de plástico, é dever de quem realiza o filme pensar, juntamente com quem dirige a fotografia, planeja o som e monta o filme, as melhores maneiras de se apresentar aquela arma de modo que seja crível.

Nisto, tudo vai contar: o ângulo em que se filma a arma ajuda a revelar se é falsa ou não. A iluminação correta é essencial. A maneira como a imagem é enquadrada, a posição da arma no plano. Sabemos que o revólver verdadeiro tem um peso que o de plástico nunca terá. É preciso treinar com o elenco que for manusear a arma para que simule-se o peso desse revólver. É preciso entender junto à equipe de som como entregar foleys críveis para esse objeto: que tenha som de um revólver de metal sendo pegado ou manuseado, que seja bem mixado e totalmente integrado à cena, bem como o som de seu eventual disparo, para que nada soe fake. E, não menos essencial, que se tenha muito claramente, através de tentativa e erro, um preciso número de quantos frames são necessários para que aquela arma apareça de maneira crível para o público.

No documentário The Cutting Edge: The Magic of Movie Editing (2004), há um momento interessantíssimo onde o diretor Steven Spielberg e a montadora Verna Fields expõem uma dificuldade que tiveram na ilha de edição de Tubarão (1975). O filme, que é uma aula de sugestão através de corte e som, em sua segunda metade resolve mostrar o tubarão do título em português. O animal utilizado nas gravações era um grande mecatrônico de borracha, um robozão de movimentos bem limitados. Há um plano crucial de apresentação do mesmo no filme que não funcionava e incomodava bastante Spielberg e Fields. Segundo eles, o plano deixava totalmente claro que era um tubarão de borracha, não assustava, não ameaçava, jogava por água abaixo toda a construção de suspense que a primeira metade estabelecia. Após diversos testes na ilha de edição, Fields descobre que se fossem retirados dois frames do take, ele funcionaria. É quase que surreal, mas dois takes denunciavam o tubarão de borracha. Retirados ambos, o plano gruvou lindamente e a finalização seguiu.

Como conto de memória — tem muitos anos que vi esse documentário — , não sei exatamente se os dados que narro são precisamente corretos, mas a história é mais ou menos por aí. Sempre conto ela quando quero exemplificar a importância que a minuciosidade do corte tem nesses momentos, e é dever de toda a equipe que se propõe a pensar o filme imagética e sonoramente descobrir a melhor maneira de representar o que é falso como verdadeiro.

A motivação desse texto vem, justamente, de meus próprios erros passados com armas de plástico, além de recentes conferidas em filmes universitários ou “amadores” que utilizam de armas fake exigindo que o público as aceite como armas verdadeiras diegeticamente e acabam, muitas vezes, se sabotando pela falta de sutileza ou estratégia na maneira como se apresenta esse fake. Cenas que envolvem armas geralmente envolvem tensão, e essa tensão pode ser destruída se a ameaça ali representada for, claramente, uma espoleta ou arminha de airsoft com ponta alaranjada. Isso vale para armas ou qualquer elemento de cena que se apresente como importante para a dramaturgia encenada diante da câmera. Não se trata de fazer tudo embasado na realidade, com essa tendência naturalista exacerbada contemporânea. Trata-se de ser fiel à diegese do filme. Se o filme for realista, ganha bastante se o que for apresentado em cena for crivelmente realista. Um filme não deve ser verossimilhante à realidade de fora da tela, e sim à realidade do universo exposto no quadro.

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