A câmera de CGI em The Flash

Calebe Lopes
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7 min readJun 13, 2023

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O que pode o cinema de quadrinhos?

Em determinado momento do livro Super Deuses, quando vai falar sobre a revolução nos quadrinhos de super-heróis causada por Watchmen (Alan Moore, Dave Gibbons), Grant Morrison analisa a primeira página da obra lançada em 1986.

Morrison narra quadro a quadro a ação que parte do broche do Comediante na sarjeta até o ponto de vista da janela do apartamento de Blake. Para Morrison aqui está um exemplo da potência da linguagem dos quadrinhos: a primeira página de Watchmen nada mais é que um plano zenital com um super zoom out— plano que jamais poderia ser feito com as lentes zoom disponíveis na época. Morrison então conclui que os quadrinhos enquanto arte sequencial conseguem ir até onde o cinema, por limitações tecnológicas, não consegue.

Se analisarmos com atenção a distância que a arte de Gibbons ilustra, é bem capaz que cheguemos à conclusão de que ainda hoje não existe uma lente zoom capaz de fazer esse deslocamento óptico todo. A limitação, porém, é mecânica, não tecnológica.

Para além da ainda imprecisa utilização de drone, com o uso do CGI (imagens geradas por computação gráfica), atualmente esse plano da primeira página de Watchmen pode perfeitamente ser reproduzido no cinema (e de fato o é, na adaptação dirigida por Zack Snyder em 2009 — ver vídeo abaixo). A computação gráfica, portanto, mostra-se como o caminho possível para que o cinema alcance os quadrinhos e se equipare diante de suas possibilidades imagéticas. Mas a que custo?

Se a computação gráfica parece trazer possibilidades ilimitadas para a câmera de cinema, ela própria tem suas limitações: a principal delas, creio eu, seria a perda de uma suposta verossimilhança. Perde-se a ilusão do “real” e muitas vezes também a “imagem de cinema” — sobrando a imagem de videogame ou animação. Quão mais fundo se vai na ousadia da encenação com CGI, mais a ação pode parecer falsa.

O modelo atualmente parece ser o da busca por um equilíbrio: imagens com “câmeras de CGI” que parecem “de verdade”. O CGI que tenta não soar como CGI. Limita-se, portanto, o que poderia ser sem limites caso fosse assumido o artificial da imagem.

The Flash (2023), dirigido por Andy Muschietti, parece abraçar esse desafio. A câmera aqui é livre para percorrer distâncias gigantescas em segundos. Saltos espaço-temporais são dados num intervalo de poucos frames. Muschietti até decupa bem, existem planos bem blocados que unem diversos ângulos sem cortar (ou emendando planos com “cortes invisíveis” através de efeitos visuais), além de um uso de lentes diversificado, fugindo daquele visual chapado de filmes do tipo que sempre parecem ser enquadrados da mesma forma. O que quero chamar a atenção, porém, é para o fato de que a câmera de The Flash comporta-se como uma “câmera de quadrinhos” e, por um momento, movimentos apenas possíveis nas páginas de um gibi são levados para a tela branca através de um olhar que sempre soa digital, falso, “videogame”.

É aí que mora o principal ponto que chama a minha atenção em The Flash. Me parece, inclusive, que seja o ponto de cisão entre quem gostará ou não do filme. O CGI é farsesco, pouco realista, eventualmente até possui uma aparência de ausência de finalização, como se faltassem texturas ou um trabalho melhor acabado para a iluminação daqueles corpos 3D.

Ao mesmo tempo, a liberdade que essa “câmera CGI” dá para que Muschietti encene como bem entender a ação não deixa de ser um trunfo, tornando The Flash um dos filmes que mais se aproximam da experiência de ler um quadrinho com ação bem desenhada, onde as páginas saltam da bidimensionalidade e parecem ganhar vida e sensação de movimento.

A questão é que o filme parece muito consciente disso. No lugar de tentar ofuscar sua precariedade de CGI com os velhos truques desse tipo de filme — isolar a ação em um “não-lugar” de horizonte opaco, fazer as principais cenas de ação se passarem à noite -, o filme de Muschietti dobra a aposta: o tom é cartunesco, o som é exagerado, a computação gráfica não faz a menor questão de “parecer real”, e além: o filme se passa majoritariamente de dia. O sol pelando, o céu azul, e essa desconcertante aparição de seu Batman, uma criatura geralmente vista no cinema à noite, aqui atrelado a uma ação fantasiosa, exagerada, transbordante de camp.

Trago outro exemplo: há uma cena no começo do filme que envolve um resgate de bebês que após explosões em um hospital, saem voando pelas janelas quebradas da maternidade, acompanhados de uma enfermeira pelos ares.

Muschietti na maior parte do tempo filma a enfermeira em tela verde, a atriz está lá, gritando em slow motion enquanto cai rodeada de nenéns e destroços: os bebês, porém, são todos de CGI. Não apenas eles, há um cãozinho de CGI, uma pelúcia de CGI, uma máquina de bebidas de CGI. Não se trata apenas de evitar filmar bebês ou animais em uma tela verde por questões logísticas — ao menos os planos fechados em seus rostos poderiam ser feitos assim. O filme assume que aqueles bebês são feitos digitalmente. Eles estão ali, à luz do dia, com uma movimentação esquisitíssima em slow. A questão, porém, vai além do mero estilo: ao assumir que o espectador não deve procurar bebês “de verdade” naquela cena, Muschietti compensa isso colocando os recém-nascidos em situações que seriam impossíveis de serem filmadas com bebês de verdade. É aí que está a beleza da ambiguidade da escolha: o que falta de verossimilhança na imagem, sobra de possibilidades para encenar o que quiser, do jeito que se quiser.

É ao assumir esse tom de desenho animado registrado de maneira tão frontal, artificial, colorida (e auxiliada por um trabalho musical inspirado e uma mixagem de som impactante), que The Flash apresenta uma ingenuidade que dialoga automaticamente com os filmes de super-heróis da primeira década dos anos 2000. Pegando carona na própria maneira que o protagonista lida com o alcance de seus poderes (e o filme realmente se utiliza do tom pré-estabelecido de Barry Allen para construir seu humor e localizar seu coração), a obra parece sempre estar se surpreendendo com essas possibilidades, tendo algum fascínio pela construção de universo e pelos códigos já estabelecidos do gênero. Essa ingenuidade, creio eu, faz bem ao filme.

Faz tão bem, aliás, que o redime das facilidades de roteiro, das piadas que nem sempre funcionam — e às vezes soam constrangedoras ou apenas bobas-, dos lugares comum e dos clichês já batidos desse tipo de produto — a tiradinha ao final de cada cena, a cena de ação com música pop, o requentamento de personagens e vilões já aproveitados em outros filmes.

A trama é bastante simples: Barry Allen é um perito forense que após sofrer um acidente num laboratório se torna o homem mais rápido do mundo, o super-herói Flash. Sua velocidade é tamanha, que Allen descobre que pode ultrapassar a velocidade da luz e viajar no tempo. Surge, então, o desejo de voltar décadas no passado para impedir o assassinato de sua mãe e a prisão de seu pai, principal suspeito do crime. Como em todo filme de viagem no tempo, porém, as consequências dessas alterações espaço-temporais são inesperadas. Barry acaba em um caos no multiverso.

O que me importa neste texto, porém, não é comentar atuação, pontos fortes e fracos de roteiro ou participações especiais. Para mim, The Flash é um “mais do mesmo” com algo novo, ao esticar ainda mais essa corda da artificialidade e recusar a verossimilhança em sua forma. Por transformar a “problemática do CGI” em possibilidade, em força estética. Para além de todo chilique que sempre acompanha esses lançamentos de super-heróis (e picuinhas, e defesas apaixonadas a grandes estúdios, e ataques por opiniões pré-concebidas), o que me interessa aqui é tentar provocar um pouco além a nossa compreensão da linguagem, das escolhas de direção em um filme tão sufocado por demandas mercadológicas, das possibilidades que um filme “videogame” traz.

Há um momento do filme em que Barry mostra como faz para atravessar paredes, através da desorganização de suas moléculas. A câmera parte de um plano fechado no rosto de Ezra Miller e avança num zoom in que adentra sua íris e vai até a imagem microscópica das moléculas do personagem atravessando por entre as moléculas de uma porta. Após a movimentação, a câmera faz o caminho contrário, num zoom out apressado. Está ali o zoom que antes só era possível nos quadrinhos. Independente de ser bom ou não enquanto cinema (e realmente o acho bastante divertido), o que merece ser refletido é que The Flash, junto a títulos como Sin City (2005), Speed Racer (2008), Hulk (2003) e Aranhaverso (2018), é um “filme de quadrinhos”, no melhor sentido que isso pode ter: o da intersecção entre linguagens.

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