A câmera que pulsa

Calebe Lopes
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8 min readMay 24, 2023

Sobre o abismo entre objetificação e desejo no cinema

Nitrate Kiss (1992)

O Festival de Cannes desse ano exibiu episódios de uma vindoura série da HBO chamada The Idol, criada por Abel Tesfaye, Reza Fahim e Sam Levinson; que desde antes de seu lançamento já surge envolta em polêmicas histórias de bastidores. O papo todo sempre gira em torno de supostas cenas pesadas de sexo que a série tem, e em meio a preocupações notáveis sobre a suposta representação gratuita da nudez, o papo sempre descamba para uns moralismos um tanto curiosos.

Não quero aqui entrar no mérito de quase ninguém ainda no mundo ter assistido ao programa, nem mesmo na caretice do quanto o sexo ainda choca — o que, no mínimo, pode revelar que essas pessoas só assistem a um tipo muito limitado de filmes, uma vez que diversas e notáveis filmografias estão permeadas pela representação gráfica de sexo, de Barbara Hammer a Gustavo Vinagre.

Psicose (1960)

Como forma da gente analisar a representação do sexo no cinema por um viés que escape do moralismo bobo de “é gratuito ou não é” (até pra fugir dessa visão utilitarista de filmes onde tudo precisa ter um propósito estético ou narrativo — afinal, o que seria uma nudez justificada? Aquela que não está posta em contexto sexual? Por quê?), o que quero propor aqui é que a gente não negue o desejo, o sexo, a nudez no cinema. A priori, o cinema pode e deve representar tudo o que faz parte da vida e além. O cinema pode tudo. A questão é sempre o como. A forma do filme é que precisa estar em debate. Como disse William Friedkin certa vez (e já citei essa frase aqui em outros momentos), “onde você coloca a câmera diz quem você é”. É esse o lugar do debate da representação do corpo e do sexo no cinema, mas me parece que sempre isso acaba caindo num papo conservador de “não deve ter cenas de sexo/nudez”, ou de serem desnecessárias, ou pior, como uma criatura outro dia me falou no Twitter: “existem tantos outros assuntos mais importantes do que sexo a serem abordados no cinema!”. Afinal, quem matou o desejo também matou a linguagem cinematográfica?

Pra gente discutir sobre objetificação no cinema, é preciso ter uma mínima capacidade de leitura da forma fílmica. É preciso atentar para a objetificação e não confundi-la com a nudez. A questão toda está na maneira como se filma, onde se coloca a câmera, onde e quando se corta um plano. É uma problemática do olhar.

Marte Um (2022)

O olhar é o que ele é. O olhar deseja, independente de quem esteja filmando. Sempre haverá o olhar, porque sempre haverá subjetividade, inconsciente e pulsão. Cinema existe por causa de e para o corpo, apontar a câmera é desejar. Tudo precisa ser um debate sobre decupagem e sensibilidade, sem respostas fáceis ou definitivas.

A questão é que o desejo durante muito tempo foi predominantemente branco, cis, masculino e heterossexual, com raras exceções ao longo da história do cinema. Deve-se disputar pela pluralidade de desejos, jamais transforma-los em pecado. Se for para problematizar, problematizemos misoginia e racismo, jamais o desejo. Nós somos ele, e parte do fascínio do cinema também é. Antes de cair em qualquer papo que ameace descambar para moralismo, nos interessemos por estudar a linguagem do cinema. Não há problema na nudez, não há problema no sexo. Não há problema nem mesmo na sensualidade, tanto da câmera quanto dos corpos encenando. Não há problema em desejar um corpo na tela, seja ele qual for.

Parceiros da Noite (1980)

Grande parte da percepção de nossa própria sexualidade, aliás, é advinda do audiovisual. Na infância, o comichão que eu sentia dentro da cueca e que me fazia ficar nervoso e com medo de estar com a respiração ofegante (o que me levava a tentar prender a respiração para que ninguém ao redor percebesse a minha exaltação) era ao assistir a Princesa Leia em O Retorno de Jedi. Outro dia li um relato no Twitter de um rapaz contando que descobriu-se bissexual quando, ainda um adolescente evangélico, foi assistir a uma peça e sentiu-se secretamente atraído pelo ator que rebolava no palco. A arte é parte intrínseca da descoberta da sexualidade, o que me leva a pensar que o cinema especificamente tem um papel fundamental principalmente na descoberta de sexualidades não-normativas. Isso, aliás, só aumenta a importância do cinema do corpo (o terror, a pornografia, o melodrama).

O desejar é natural tanto pra quem filma quanto pra quem assiste. Cinema é território de disputa. Se a imagem atrai (e é construída com) o olhar e todes devem ter acesso à câmera, a luta precisa ser para que todes possam gozar do (ou com o?) cinema. É importante que mulheres cis e trans façam filmes eróticos (inclusive aqueles polêmicos e controversos que nos deixam confusos quanto à nossa própria moral), é importante que pessoas negras filmem não apenas o amor como também o sexo. O cinema também está aí para proporcionar, por exemplo, prazer visual para mulheres pretas e lésbicas. Todes devem desejar e filmar, todes devem assistir e desejar. O desejo é um direito que o cinema nos entrega de mão beijada.

The Watermelon Woman (1996)

É importante que se assista, inclusive, obras daquele olhar e daquele lugar que socialmente não se ocupe. Quebrar um pouco essa lógica capitalista de só consumir aquilo com o quê você se identifica. A gente perde muito se só consumirmos o que retrata nossas alegrias e nossas dores. Outras alegrias, outras dores, outros gozos, outros olhares. Nós, que fazemos filmes, precisamos aprender a consumir esses outros filmes. Precisamos aprender a enriquecer o nosso olhar e a nossa sensibilidade diante do olhar e da sensibilidade do outro.

Aprender a ver filmes é aprender a desejar. Desejar tem a ver com o viver. Desejamos a todo instante — por que deveria o cinema se negar a isso, se ele próprio é a manifestação imagética do desejo? Há também de aprender a abraçar as contradições e entender que não existe cartilha, não existe manual para filmar o desejo. Ou é bem filmado, ou não é. Ou é lindo (e até excitante), ou é tosco, grosseiro, desrespeitoso. Poder-se filmar tudo não significa filmar de toda e qualquer forma. E parte da força dessa discussão está exatamente em encontrar novas formas de retratar imageticamente o desejo, formas nunca vistas, formas que fujam do convencional e preconceituoso. Eu gosto da maneira que Revenge, filme de Coralie Fargeat, retrata nudez e sexo. Eu não gosto da maneira que The Nightingale, filme de Jennifer Kent, retrata nudez e sexo. Isso quer dizer que a maneira que Kent filma é errada? Não. Ambos são filmes dirigidos por mulheres se aventurando no subgênero do terror chamado rape and revenge, área do cinema exploitaition extremamente dominada pelo olhar masculino — logo, pela misoginia. Os dois filmes, portanto, assumem um valor além dos seus próprios méritos enquanto cinema. Eles também são uma nova proposta de olhar. Ou melhor, novas propostas de olhar, com as quais podemos aprender.

Le Bonheur (1965)

Portanto, fica a provocação. Quando estrear essa tal de The Idol, se você for assistir, se preocupe menos com o quão explícito ou supostamente gratuito é o sexo. Atente para como é filmado, para como é montado, para a forma como são expostos os corpos femininos e masculinos — a exposição é equivalente? A nudez é utilizada de maneira apenas sexual? Empoderadora? Ferramenta de vulnerabilidade de personagens? Quão importante nessa obra é a vontade, o desejo e o orgasmo das personagens femininas (ou que fujam da cisheterossexualidade)? De quem é o prazer que está em questão naquela cena? São várias perguntas possíveis de se fazer. A partir daí, a gente analisa. Importante dizer: apresento aqui possibilidades de pensamentos. Não tenho caminhos para seguir após essas perguntas terem suas respostas.

O que me importa, aqui, é defender que cinema é forma. E forma é conteúdo. Pouco importa se o seu roteiro tem discurso empoderador feminista liberal pré-fabricado pelo capitalismo, se na hora de filmar você é extremamente sexista com as atrizes em cena. Mas ainda assim, o desejo e a libido das mulheres merece e deve ser retratado no cinema. Outro dia lembrei no Twitter de A Forma da Água, dirigido por Guillermo Del Toro, que tem uma protagonista que, dentre tantas características e atribuições, ainda tem uma sexualidade devidamente representada— com direito a uma cena de masturbação, coisa rara nesse tipo de filme. Ela, a grande heroína da história, tem o seu desejo como parte essencial de seu desenvolvimento enquanto personagem. No fim, o monstro marinho apaixonado é salvo por uma mulher que goza. E toda vez que isso acontece, o cinema meio que é salvo também.

P.S.: um adendo muito bem observado pelo amigo Adriano Oliveira. Algo que talvez não tenha ficado tão evidente em meu texto, simplesmente me passei enquanto escrevia: quando falamos de forma, de que “tudo é forma”, precisamos também atentar para o quê essa forma defende. Tudo é político, porque cinema são 24 escolhas por segundo. Tentar ler qual a visão de mundo, o posicionamento político expresso nessa forma. Não o que supostamente é a intenção, mas o que está lá, materialmente. Por isso que falo, nesse último parágrafo, sobre pouco importar quão bem intencionado é o roteiro, se a forma do filme vai contra o seu discurso. Tem muito filme por aí pretensamente progressista mas que formalmente é reacionário. Escrevi mais a respeito em um texto publicado aqui no Medium chamado “A Moral Formal”, fica o convite ao complemento da leitura. Parafraseando o próprio Adriano, é preciso se questionar “‘a serviço de quê está a forma, mesmo que à revelia dos seus formuladores’. O posicionamento da câmera é tanto formal quanto ético”. Assino embaixo e espero que isso esteja, de uma forma ou de outra, no texto que vocês acabaram de ler.

A Forma da Água (2017)

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