Bacurau envelheceu mal?

Calebe Lopes
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7 min readJan 13, 2023

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Ou fomos nós que deixamos de lado o que realmente compõe um bom filme?

Recentemente tenho percebido na internet e em algumas rodas de amizades — mas principalmente no twitter -, um certo desgaste do público ao falar de Bacurau (2019, dir. Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho). Pode ser que essa seja uma impressão única e exclusivamente minha, mas é o que aparenta: virou, de alguma forma, cool chamar o filme de — ok, lá vai — superestimado.

Bacurau não foi consenso em seu lançamento, o que é ótimo. Mas foi um sucesso com o público, tivemos um “blockbuster” brasileiro, como há um tempinho não tínhamos, e era um filme de gênero. Me emociona pensar que um filme de ficção-científica/terror/faroeste furou a bolha e levou tanta gente às salas de cinema — e olhando hoje, em um mundo pós-pandêmico, isso me parece um feito ainda maior.

O que quero discutir nesse texto, no entanto, não é o feito de Bacurau em relação às bilheterias. Tampouco me interessa bater nesse trocinho esquisito chamado “film twitter” — a bolha cinéfila do site que, convenhamos, em muitos momentos parece uma briga de torcida de futebol, quando não uma disputa de fãs de divas pop. Ama-se e odeia-se por muito pouco, torce-se por cineastas (e agora, pásmem, estúdios) com uma paixão curiosa.

Antes de tudo, há algo a se observar: parte do desgaste do filme perante essa bolha pode ter vindo por conta da própria participação de seus realizadores no debate público. Kleber e Juliano gostam de opinar politicamente e vez ou outra dão algumas bolas fora — errar no twitter nunca é uma boa ideia, os ânimos se exaltam. Os diretores também não parecem ligar muito, a vida segue e é melhor assim.

Considerados esses pontos (as mudanças de tendências da bolha cinéfila da internet e as “caetaneadas” que os diretores dão querendo opinar sobre tudo o que acontece no país), o que mais me pega nisso tudo é ver gente colocando que Bacurau teve aquela força toda por causa do momento político de quando foi lançado. Problematizações em torno do filme sempre houveram, umas concordo e outras discordo radicalmente — sem querer parecer presunçoso, mas acho que falta capacidade de leitura e também bagagem de cinema.

Ouso dizer que filmes como Bacurau não envelhecem mal — suas camadas mais óbvias, as alegorias politizadas sim, podem sofrer do efeito do tempo. Parte da euforia com o filme foi por causa da catarse de seu gesto maniqueísta de leitura de Brasil. Mas reduzir o filme a isso me soa como uma confissão: a da própria incapacidade de ler um filme para além de seus temas mais óbvios.

E isso cria um efeito curioso para mim, que é o quanto um artista — aqui, no caso específico, KMF — por vezes pode ficar refém dessas pinceladas políticas facilmente identificáveis para uma aprovação do grande público. Gosto muito dos filmes de Kleber, acho ele um dos grandes diretores do cinema brasileiro. Porém, considero um ponto fraco de seus roteiros justamente essas “derrapadas” nas obviedades — aqueles momentinhos em que o filme parece gritar ser um comentário de Brasil. O vilão Diego em Aquarius não é apenas um nepo baby liberal, ele também é envolvido com política, com maçonaria e com a igreja evangélica. O motoqueiro de Bacurau é também assessor de desembargador. Momentos em que só falta surgir na tela em letras garrafais PURO SUCO DE BRASIL.

Esses momentos, ao meu ver, são os mais fracos. Mas ao mesmo tempo, me parece que esses momentos são os que mais agradam a uma grande parcela do público, justamente por ser mastigado. É aquela velha dificuldade de enxergar política em subtexto, em entrelinhas, ou pior — em encenação. A forma como Kleber aborda a sexualidade de uma mulher de 60 anos em Aquarius é algo infinitamente mais político que qualquer outro exemplo que citei aqui. Esses são os gestos políticos que ficam, que não envelhecem. São gestos de cinema, gestos de forma cinematográfica.

E é justamente por conta da forma que me parece que um filme como Bacurau não envelhecerá tão cedo — só para aqueles que o leram apenas como um comentário de seu tempo, nada mais. Vejam bem, Bacurau é um western. Não lembro a última vez que o Brasil fez um filme que abraçasse com tanto vigor os códigos de um cinema de bangue-bangue dessa forma. A estrutura está toda lá. A gente lembra de Hawks e automaticamente lembra de Carpenter, da defesa do território, da amoralidade de unir “bonzinhos” e “mauzinhos” diante de um perigo maior. Mas aí você tem esses elementos naquela paisagem absurda, um sertão verde filmado com lentes anamórficas, frames bem compostos que remetem ao auge do ozploitation — um dos melhores momentos do cinema de gênero do mundo. Aí lembra de Sergio Leone, Richard Franklin, Nicolas Roeg, Paul Verhoeven, Ted Koetcheff, e a lista só vai crescendo. Não são referências ou homenagens, são formas altamente eficientes de se pensar a imagem.

Confesso, quanto mais vejo filmes, melhor Bacurau envelhece pra mim. Os comentários políticos do momento, do agora, são como jornal que hoje a gente lê e amanhã usa pra embrulhar caco de vidro. Mas e os gestos de cinema? E a montagem tão acertada na construção de tensão, de clímax, no uso desestabilizador da falta de continuidade, no charme daqueles planos estranhos inseridos silenciosa e rapidamente como em bons filmes italianos dos anos 60? E a encenação tão criativa, os zooms e demais movimentos de câmera, a fotografia cheia de textura, o figurino, o trabalho do elenco, a direção de arte, etc., etc., etc. Onde está tudo isso nessa memória do filme? Tudo isso é menor que nossa percepção moral extrafílmica? O discurso político é mais importante que a forma [política]?

Filmes não são seus roteiros.

O que defendo é que Bacurau envelhecer mal para boa parte do público é mais um problema do público do que do filme. E isso me leva, novamente, pra essa dúvida: no dia em que Kleber Mendonça Filho fizer um filme de gênero que não seja um comentário político óbvio, que não tenha momentos que grite seus subtextos, que deixe tudo muito bem estruturado na forma e não na fala, será que fará esse sucesso todo?

Adendo: é uma pergunta que me faço, aliás, sobre o cinema de Jordan Peele. As pessoas celebram os filmes de Peele mais pelos seus comentários políticos do que pelo excelente diretor que ele é. Acho muito justa a celebração da importância política que Peele tem no cinema, ele realmente é um marco principalmente para o cinema de horror. Mas ele é só bom por isso? Eu tenho visto um diretor que cresce enormemente em qualidade a cada novo filme, principalmente em sua mise-en-scène. Será que também não vale pensarmos em como ele filma tão bem, em como sabe colocar a câmera nos lugares certos para criar todo senso de urgência, suspense, espetáculo, humor? E no dia que Peele — que também, infelizmente, me parece refém de que tudo que faz seja um comentário político — fizer um filme que não seja tão mastigadamente uma reflexão sobre questões sociais? Não me parece que ele vá em algum momento por esse caminho, e acho realmente ótimo o que ele tem feito, mas vamos nos permitir imaginar isso. E se um dia ele fizer um filme que não perpasse tão facilmente identificável por essas questões? Como será que a crítica e o público reagirão?

Por fim, acho que vale uma provocação. Minhas amigas e amigos sabem do tanto que faço piadas com os filmes de Nolan. Outro dia comentei em meu twitter que Nolan, Ciro Gomes e Olavo de Carvalho tinham essa coisa em comum de empoderar homens médios para se sentirem mais inteligentes que a maioria das pessoas. É uma piada, claro, mas tem um fundinho de verdade aí. Não acho os filmes de Nolan inteligentes ou sofisticados. Ele tem conceitos, mastiga esses conceitos de uma maneira pretensamente complexa mas facilmente inteligível e voilà, temos um grupo de pessoas que defendem que Interestelar é um filme que só gente que gosta de Física vai entender, por exemplo. Será? Acho que não. É um cinema empoderador do mediano justamente porque grita a sua suposta inteligência. Guardadas as devidas (e enormes) proporções que os separam, não estaríamos também diante de um público que se sente mais inteligente por reconhecer temas políticos entregues de mão beijada pelo roteiro? Não são essas informações colocadas por simples diálogos, por falas de personagens, por metáforas óbvias, que seriam tão bem aceitas por um grande público mas que, por conta de sua fragilidade efêmera, envelheceriam mal?

Não sei se me faço entender, se viajo demais. Era pra ser sobre Bacurau, acabei falando sobre Ciro Gomes. Deus tenha misericórdia.

Mas voltando ao ponto para fechar a conta e passar a régua: filmes de cinema não envelhecem porque são filmes de cinema. Estamos falando de cinema, não de cinejornal. Bacurau, com suas qualidades e problemas, é muito maior que seus próprios acertos e erros. Não é minha intenção cagar regra sobre como se deve assistir um filme ou sobre o que é um “bom filme”. Não é questão de bom gosto, bom gosto não existe. Mas a História existe, os fatos existem, o cinema por si só já é um registro vivo. Os filmes que permanecem dificilmente são os que são apenas um comentário político de seu tempo. Eles têm algo mais. Geralmente têm paixão, outras vezes têm milagres, verdadeiros feitos de alquimia. A câmera, o som, o corte, tudo isso está lá.

A moral de um filme está em sua forma — a política também. Acredito que temos, enquanto público e também enquanto realizadores, que tomar cuidado com essas fortes tendências de nossos tempos de que tudo esteja óbvio demais, nítido demais, cristalino demais. Filmes precisam ser opacos para que nos esforcemos para lê-los mas principalmente para senti-los. A opacidade é o que garante que o sentir venha antes do interpretar. O que é nítido, envelhece. O que é opaco, fica. Bacurau por vezes é até fraco como comentário de Brasil mas sempre forte como filme de cinema.

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