Barbie e o espetáculo da contradição

Calebe Lopes
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9 min readJul 20, 2023

A importância da sabotagem na máquina hollywoodiana

Desde que o mundo é mundo (ou o capitalismo é o capitalismo), surge a discussão sobre a importância de lutar contra o sistema estando dentro do próprio sistema. Hollywood coleciona cineastas sabotadores, gente que entra na indústria, trabalha para a grande máquina e ainda assim tenta, aos trancos e barrancos, dar um toque autoral a projetos sob demanda feitos para as multidões. Vez ou outra ocorrem milagres, quando além da autoria são inseridas mensagens de revolução, cartas que instigam a consciência de classe e são colocadas escondidas, aqui e ali, no meio de um contrabando de ideias. Eles Vivem (1988), de John Carpenter, é um desses exemplos, chamado por Slavoj Zizek de “uma das obras-primas de esquerda” produzidas pela indústria estadunidense.

Hollywood e seus blockbusters como território de disputa ganha contornos novos na pós-modernidade, em especial na presente década. O empoderamento e a representatividade vendem, afinal. Foram engolidos e assimilados pelo capitalismo, ao notar que quem queria ser empoderado(a) e representado(a) também tinha poder de compra. A revolução, no entanto, ainda não vende tanto. É por isso que não existem tantos Eles Vivem, e é por isso que Pantera Negra tem como vilão um revolucionário.

Esse território de disputa ganha uma nova camada a partir de Barbie (2023), dirigido por Greta Gerwig. É um filme que se constrói todo a partir desse tensionamento entre uma provocação política palpável e a mensagem de boa vizinhança que vende, cerceada não apenas pelo estúdio (a Warner Bros.), como também por uma marca: a Mattel. Temos aqui um filme que luta contra si a todo instante, hora se vencendo, hora perdendo para ele mesmo.

A palavra que melhor define o trabalho de Gerwig aqui talvez seja “autoconsciência”, e vem dela parte dos muitos méritos do filme e também alguns de seus problemas. Por se tratar de um filme a partir de uma boneca famosa, ou seja, um brinquedo com apelo pop mundial, integrada a todo um imaginário construído por gerações, Greta abre mão dos caminhos mais óbvios e cria, em Barbie, uma espécie de “Show de Truman”, uma jornada de tomada de consciência e de confronto entre um mundo idealizado e um mundo real. Sua Barbie inicia Buzz Lightyear e termina Pinóquio, num processo rumo à humanidade. Barbie não nasce mulher: torna-se.

É um filme estranho, de escolhas cheias de personalidade entre momentos onde o caráter comercial grita mais forte. O que se sobressai, porém, é justamente a direção de Greta. Ao optar por uma estética que abrace o camp, o kitsch, Greta recorre não apenas aos filmes mais óbvios de tomada de consciência (Truman, Matrix, etc) como também abraça um cinema musical mais clássico, bebendo muito de filmes como Os Sapatinhos Vermelhos, Cantando na Chuva, O Mágico de Oz e até do cinema de Jacques Demy. Seus momentos mais sombrios e existencialistas por vezes são suprimidos, mas estão lá. Me pergunto até se o roteiro não teria uma mão mais pesada sobre essas questões, que teriam sido amenizadas pela montagem. Ainda assim, as horas de delicadeza em meio ao festival de estímulos e cores são marcantes, como o diálogo em um banco de ponto de ônibus com uma senhorinha idosa com a autoestima em dia. Singelo e significativo.

Dentro dessas escolhas estéticas, uma das que mais me agrada é como a câmera se comporta — sai de cena aquela “câmera digital” onipresente nos blockbusters atuais. Em Barbie dá pra sentir o peso da câmera de cinema, a movimentação de atores nem sempre precisa, os cenários construídos e também preenchidos com mattepainting, até um certo vacilar da própria câmera em cada travelling ou pedestal. E até mesmo quando usa o CGI, o utiliza dessa maneira coerente com sua mise-en-scène, dando um caráter artesanal aos efeitos visuais. É um blockbuster autoral, no fim das contas, sabendo que essas duas palavras geralmente são antagônicas e implicam paradoxos.

Daí a necessidade do roteiro de Gerwig e Noah Baumbach de a todo momento ser autoconsciente de tudo. Tem horas que funciona, principalmente quando o filme parece rir de seu próprio ridículo e também piscar para a tela justamente quando está diante de suas contradições. Em outras horas, soa como um tiro no pé, porque coloca o filme em uma posição tensa, de a todo momento tentar se antever ao público.

Parece que o roteiro quer se precaver de todas as críticas possíveis, se blindar contra todas as problematizações que ocorreriam no Twitter — que, aliás, em certos diálogos/monólogos parece assumir co-autoria da escrita. A montagem intercalando as várias atrizes que interpretam Barbies quase como um “ei, aqui tem diversidade!”, ou a própria piada da white savior ao fim, são bons exemplos de um filme bem intencionado mas por vezes ansioso por dar conta de todas as suas contradições.

Essa tentativa de GRITAR a autoconsciência, dilui um pouco a tão bem-vinda sutileza que o longa consegue construir aqui e ali, e injeta em Barbie um cinismo que acaba por quebrar suas pernas em alguns momentos, principalmente os de ordem emocional. Soma-se a isso uma montagem que tem vários bons acertos, mas que, inevitavelmente, também soa picotada em outros, quase como se o filme tivesse que correr contra o tempo em suas transições de atos. Por favor, #ReleaseTheGerwigCut.

A fotografia de Rodrigo Prieto, um dos melhores fotógrafos da indústria, é um desbunde. Cria profundidade e recorte com luz, destacando personagens e ações dos cenários multicoloridos sem nunca chapar a imagem, bem como reconfigura a lógica de decupagem quando os personagens estão no mundo real — onde tudo, obviamente, é mais realista, mais câmera na mão, mais luz natural.

Por mais que seja um filme onde todo mundo se expressa demais por diálogo e não tanto por gesto ou reação, ainda assim Barbie é um filme de esmero e pensamento da imagem. A decupagem é muito boa, os planos têm charme e conversam lindamente com os efeitos visuais mais breguinhas, sempre catapultados por um design de som que se diverte ao jogar com esse imaginário de brincadeira de criança. É um filme de consistência formal muito admirável, como se sua diretora realmente tivesse participado de cada uma das etapas, discutido ideias com cada um dos departamentos técnicos — coisa cada vez mais rara no cinemão hollywoodiano. Greta, que em sua carreira solo na direção até agora só nos presenteou com belos filmes, cresce a cada um deles como encenadora.

Se consegue esse feito impressionante na forma fílmica, por outro lado enfrenta problemas no que propõe articular politicamente. Tudo o que envolve feminismo e reflexões sobre o ser mulher e o ser homem em uma sociedade patriarcal é muito feliz — e já falo mais sobre isso-, mas o filme não consegue escapar do cinismo em sua crítica anticapitalista.

Em alguns momentos de lampejos de genialidade (em meio ao sufoco que deve ser fazer um filme com tanto dinheiro e atravessado por tantos interesses), como o diálogo onde um personagem masculino diz que os homens “continuam no poder, só aprenderam a disfarçar melhor”, o filme demonstra sempre estar disposto a ir mais fundo, porém nunca consegue.

Não é papel dele, aliás, ir mais fundo. Mas sempre fica o gosto amargo do filme que, em seu trecho de Mundo Real, opta por representar a Mattel, a empresa bilionária, como uma caricatura digna dos laboratórios ACME. O mundo é real, os problemas são reais, tudo nele é real, mas a Mattel surge com capangas engravatados de óculos escuros e um CEO bobão e histriônico. A escolha por retratar a empresa dessa forma acaba por descolá-la um pouco da realidade. A própria existência da Mattel na trama, seu arco, faz pouca diferença no todo.

Há uma crítica mais ácida ou outra à Mattel, mas permanece a impressão de que no fim das contas é uma empresa bancando o projeto dizendo “olha como somos conscientes, olha como fazemos autocrítica”. Barbie decai quando, em algumas cenas, soa como um comercial de 8 de março produzido por uma dessas empresas descoladinhas. Por outro lado, tenta se blindar assumindo que está consciente dessa contradição. Esse embate é visível no texto e na tela. A luta anticapitalista do filme nunca é explosiva, nunca chama à revolta. Pelo contrário, termina até um tanto conciliadora, sem danos para a Mattel — eles saem ganhando, na verdade. Ao invés de um levante contra aqueles engravatados, uma sugestão de um produto novo que vai bombar nas lojas. Todo mundo sai feliz no mundo da representatividade no capitalismo tardio.

Por outro lado, ainda como sintoma de tudo isso que desenvolvo aqui, a crítica ao patriarcado é muito bem feita. Sempre defendo que todo filme é político, mas que filmes que se propõem a abraçar e desenvolver frontalmente algum tema político precisam estar prontos para o embate. Em boa parte de suas proposições políticas, Barbie é um afago em mentes já convertidas. Mas seus grandes momentos de gesto de confronto, creio eu, são quando bate de frente com o patriarcado.

Ali o filme se torna incômodo para quem é homem cis, e julgo que a maioria das mudanças reais e palpáveis só se dão a partir do incômodo. Quando debate masculinidade, feminismo, e utiliza dos Ken como motor propulsor de uma caricatura do homem na sociedade, o filme é muito feliz. Um acerto enorme em um filme com esse alcance, que espero que reverbere bastante, incomode quem precisa incomodar, abrace quem precisa de abraço e o principal: que inspire novas e velhas gerações a outras formas de viver, outras formas de se relacionar com o outro, outras formas de “seja o que você quiser”. Toda essa força só está no filme, porém, porque é cool para as marcas se mostrarem conscientes e apoiadoras da igualdade de gênero.

Barbie, portanto, é um filme de negociações, de ganhar aqui e perder ali. Não acho justo diminuir sua força por se tratar de um filme produzido por uma empresa de vender brinquedo — logo, um imenso merchandising de produtos e de “olha como somos legais” durante 2 horas-, mas acho importante assisti-lo com consciência crítica, sabendo que muito de suas virtudes estão ali por conta de muita luta — em especial de mulheres-, mas também porque muito do que se lutou foi assimilado pelo capitalismo, que se adaptou e permitiu que isso estivesse no filme.

Não é e não quer ser um manifesto político, é um produto feito sob encomenda. Felizmente, a cineasta que topou fazer o produto, é uma contrabandista de ideias. Por vezes mantenedoras de um status quo de branquitude? Sim. Mas ainda assim, ideias que são bê-a-bá de mudança. Assim como Star Wars foi para mim na infância, espero que Barbie seja para muitas outras crianças. Entre o filme de boneca que inspira meninas e meninos a destruir o patriarcado e o filme de boneco que tenta se mostrar progressista enquanto defende uma visão de mundo também conservadora, não tenho dúvidas do que prefiro e defendo.

Esse caráter contraditório, de embate, é o que mais me interessa. Muitos dos meus heróis e heroínas do cinema fizeram filmaços dessa forma, sabendo jogar, ganhar e perder, em frente aos estúdios, vide o próprio Eles Vivem, vide Stranger Days (1995), vide Corra! (2017), vide Andor (2023). Para além de tudo, Barbie é divertido, engraçado, por vezes emocionante. Tem um elenco inspirado (preciso destacar que é a melhor atuação de Ryan Gosling) encabeçado por uma Margot Robbie completamente entregue, é um filme que sabe ser leve e por vezes pesado (ainda que de maneira diluída): um blockbuster de respeito, afinal.

Será uma vitória para os grandes estúdios e certamente inspirará sequências ou filmes na mesma onda. Mas torço para que, dentre todo esse dinheiro que gerará, consiga sabotar só um pouquinho o sistema e ser uma arma principalmente para abrir a mente de pessoas mais novas. Como filme, é fascinante até em suas imperfeições, justamente pelo embate autoria-estúdio. Como sementinha de revolução, Barbie é um belo e contraditório “foice e Mattel”.

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