Com Quantos Planos se Narra uma Ação?

Calebe Lopes
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6 min readDec 9, 2018

Montagem desde a decupagem

Stanley Kubrick na ilha de edição de Barry Lindon, em 1974. Foto de Vivian Kubrick.

Recentemente, em virtude de uma repaginada em minha conta no Vimeo, acabei me deparando com uma das minhas primeiras tentativas de fazer cinema ainda na adolescência, um curta-metragem que por motivos de força maior nunca foi concluído, restando um corte incompleto dele que nunca pôde ser exibido.

Para além do fato de ser um material muito ruim, um detalhe me chamou a atenção numa determinada cena do curta. A ação da cena é muito simples: a personagem entra em um frigorífico, e apenas isso.

Totalmente imersos em “processos empíricos de tentativa e erro”, eu e o amigo que codirigiu o filme comigo não tínhamos nem ideia da importância de uma boa decupagem para o planejamento de nosso filme, criando os planos na hora de gravar — o que não deixa de ser um exercício de criação, no mínimo, interessante, embora a existência de uma decupagem não anule a improvisação em um set, pelo contrário, podendo deixar o(a) cineasta seguro(a) o bastante para criar em cima do estabelecido na pré-produção.

Decupagem (do francês découpage, derivado do verbo découper, recortar) é o planejamento da filmagem, a divisão de uma cena em planos e a previsão de como estes planos vão se ligar uns aos outros através de cortes.

Mas voltemos à ação que deveríamos filmar: uma garota entra em um frigorífico. Para filmar uma ação tão simples, a encenamos em três planos diferentes: um geral, mais aberto; um plano médio, mais fechado; e um plano detalhe de uma flor, com a entrada da garota ocorrendo em segundo plano, tudo desfocado em 1.4, como manda a “cartilha do cineasta de guerrilha”, é claro.

Na etapa da pós-produção, justamente eu e o amigo estávamos montando o filme. Não deu outra, utilizamos os três takes na mesma sequência. Como é uma ação muito simples, que ocorre em um espaço de tempo muito curto, é claro que a fluidez da cena ficou estranha, os planos duravam menos do que deveriam e logo cada um era interrompido para que viesse o seu sucessor, que não apresentava nada mais do que a cena vista de um outro ângulo — com seu devido raccord, como manda a “cartilha do cineasta de guerrilha”, é claro.

Mais de 5 anos depois, após esse tempo todo trabalhando como montador e fazendo/estudando filmes, a sequência me incomodou enormemente, de uma maneira que, obviamente, não havia incomodado na época da montagem do curta. O que me levou a pensar, nas últimas semanas, sobre esses vícios que quem está começando a fazer seus próprios filmes enfrenta, principalmente quando quem monta foi quem escreveu e/ou dirigiu.

Seria muito melhor para a fruição da cena, se eu escolhesse apenas 1 dos planos e deixasse a garota entrar no frigorífico em paz, sem mutilar sua ação a cada dois segundos apenas para não perder meus takes desfocados “lindões”. Na minha experiência como espectador de filmes independentes e de guerrilha, sempre vejo coisas do tipo: ações mutiladas por uma ânsia de mudar de plano. Claro que existem casos e casos, muitas vezes a alternância rápida de planos pode fazer parte da linguagem ou da estética aplicadas, entende-se e justifica-se. Mas boa parte do que vejo não me parece pertencer ao caso.

Essa ânsia por sempre mudar de planos, por utilizar todos os planos gravados, não apenas denota uma imaturidade na montagem (mediante a incapacidade de discernir qual take escolher e por quais motivos), como também revela uma precariedade na própria decupagem do filme. Parece que existe um deslumbre com a possibilidade de decupar e criar vários planos mirabolantes para a mesma ação, quando, na verdade, muitas vezes essa infinitude de planos só vai diluir sua cena. Muitas vezes, a ação da cena inteira poderia ser narrada com apenas 1 take, por exemplo.

Isso me remete a uma das entrevistas de Stanley Kubrick ao Michel Ciment narradas no livro Conversas com Kubrick, onde conversava-se sobre Laranja Mecânica, na ocasião. Ciment questiona Kubrick sobre sua opção de, muitas vezes, deixar a câmera totalmente estática e encenar, reduzindo o número de cortes; ao que o cineasta responde:

“Tento ter um motivo para cortar. Se uma cena funciona bem de um determinado ângulo, e não há motivo para cortar, então não corto. Mas, em contrapartida, quando você corta, o efeito é bem maior. Em uma cena em que o elemento mais importante é a interpretação do ator, eu não corto até que a interpretação do ator seja mais valorizada em outro ângulo”

Essa resposta do cineasta estadunidense é muito precisa. É necessário descobrir a potência do plano como unidade de tempo e espaço imagética. Para extrair o máximo possível de um plano, todavia, é necessário planejá-lo. Daí, uma boa decupagem, por exemplo, vai te levar a pensar qual o melhor ângulo a colocar a câmera. Qual a melhor lente. Como coreografar a câmera e os corpos em cena diante daquela configuração que você decupou. Confiar no plano, confiar na mise-en-scène, confiar em seu elenco. Atuação não é apenas diálogo, é corpo e timing. É preciso pensar a imagem, pensar o quadro.

Pensar a imagem na pré-produção envolve já pensar a montagem. A montagem não é apenas o ato de editar um filme, de juntar o que se filmou. A montagem é pensar, desde antes, a forma do filme. A ideia de montagem vai estar em todas as etapas do processo, e o próprio roteiro já está, constantemente, infestado por noções de corte ou transições, por exemplo.

Daí vem a principal questão: quando cortar. É um assunto extenso, por vezes bastante subjetivo, exige feeling, que só é desenvolvido com o tempo e a prática. No entanto, Walter Murch, montador premiado de filmes como Apocalypse Now, e autor duma grande bíblia sobre montagem — o livro Num Piscar de Olhos -, desenvolve 6 regrinhas que o guiam no critério de qual plano escolher para seguir adiante com a história. Lembrem-se que cada plano deve suceder o outro guiando a narrativa adiante, jamais retrocedendo. Os planos devem ter química, devem conversar, se identificar, casar e ter filhos. Se não der match, não rola, melhor procurar outra solução, ao invés de forçar a barra e deixá-los juntos lá.

No livro, Murch vai além e estabelece uma hierarquia por porcentagem para tais critérios:

Claro que isso não é uma regra, apenas um norte. O que pretendo com este post é compartilhar esses pensamentos que, creio, podem ser úteis pra quem está começando ou já trilhando esse caminho do cinema independente.

Cada corte mal feito é como uma interrupção na fruição do filme, e se muitas vezes não incomodam ao olhar superficial do senso comum, certamente interfere no aproveitamento até mesmo inconsciente da obra. Cada segundo de plano, geralmente, é composto por 24 frames. É como se fossem 24 oportunidades de cortar, e há de se notar quando fazê-lo. Para além de quando cortar, talvez seja mais necessário ainda aprender quando não cortar. “Editar”, segundo Murch, é “tirar as partes ruins do filme”. Lapidar seu material. Experimentar os limites da encenação, romper com o fetiche dos planos longos ou planos sequência, adentrar num pensamento mais aprofundado de como resolver sua ação através da mise-en-scène só nos leva a ganhar. Pensemos nisso.

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