Corpo à deriva

Calebe Lopes
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8 min readMay 20, 2023

Daïnah, a mestiça (1931) e A Espada e a Rosa (2010)

Texto escrito como complemento à experiência de assistir aos dois filmes. Ao final, estão os trailers de ambos.

É muito bom poder combinar filmes que a princípio não têm muito em comum. Não sei de onde vem esse sentimento de mistura, mas desde criança sempre gostei do sabor de Coca-Cola com Fanta Uva.

É dessa busca por testar como filmes reagem diante de um tensionamento, que tento pensar sobre Daïnah, a mestiça (1931), filme francês dirigido por Jean Grémillon, e A Espada e a Rosa (2010), filme português dirigido por João Nicolau. O ponto de encontro entre ambos são as narrativas de gênero que se passam em alto-mar, tendo aqui um olhar que parte de como ambos os filmes marítimos pensam a imagem e o corpo.

São filmes também que considero um tanto esquecidos pela cinefilia brasileira: nunca encontrei texto em português sobre Daïnah, e sobre A Espada e a Rosa ouvi bem pouco, mais na época de seu lançamento e em um debate CINUSP com o diretor, que deixo linkado aqui. Esse desejo quase arqueológico de falar sobre filmes não tão falados, tentando provocar alguma junção ou cisão entre eles e ao mesmo tempo fazer com que sejam (re)descobertos, é o que me move aqui. Considero este texto uma tentativa, por vezes precária, de ir ao encontro desses filmes.

Pois bem, vamos a eles.

A Espada e a Rosa, espécie de comédia musical aventuresca, é um filme estranho. Não apenas pelas reflexões que propõe sobre Portugal, sua História e seus caminhos ainda a se percorrer, mas porque sempre me soa formalmente um Objeto Navegante Não-Identificado, deslocado no tempo. O filme acompanha Manuel (Manuel Mesquita), um tipo extremamente “homem mediano”, comum, medíocre, que cansado dos dias precários e sufocantes ao lado de seu gato Maradona, resolve abandonar a vida e partir para uma trama aventuresca a bordo de uma caravela portuguesa do século XV. O corpo fílmico troca de roupa durante seus 140 minutos, sempre vestindo gêneros cinematográficos que melhor funcionem para a história de seu protagonista errante. Começamos com um musical de humor estranho, e logo acompanhamos sua transformação numa aventura de pirata.

Já com Daïnah (Laurence Clavius), no filme homônimo, a vida no mar não é escapatória, e sim prisão. Dançarina em um cruzeiro de luxo onde também trabalha seu marido (Habib Benglia), um ilusionista, a mulher compartilha com o companheiro a condição de ser uma das poucas pessoas não-brancas na embarcação; todas ali a trabalho.

Seu marido é um homem preto melancólico, solitário e recluso. Daïnah, como o título do filme sugere, é uma mulher negra de pele clara. O casal, ao que o filme dá a entender, tem um acordo não-monogâmico, o que começa a incomodar o marido aos poucos, tomado de ciúmes pelo sucesso que a esposa faz entre os homens do lugar. Daïnah é querida, desejada, popular; flerta com todos — o que enche o filme de uma curiosa tensão sexual pouco esperada para uma obra de quase 100 anos atrás. Um dia, um desses flertes é recebido erroneamente por um mecânico que trabalha no navio como um convite sexual. O homem tenta beijá-la à força, mas é rejeitado.

Pouco tempo depois, Daïnah desaparece no navio, e um mistério se inicia para o ilusionista. De um filme bem-humorado e carregado de energia erótica, Daïnah torna-se um thriller de mistério e consequentemente, um filme de vingança. A experiência de entrar em contato com um filme de 1932 que, a seu modo, já tenta colocar questões de gênero, raça e classe em sua narrativa, é bastante instigante justamente por refletir os pensamentos de sua época.

O que interessa aqui, porém, é pensar em como ambos os filmes partem de corpos à deriva no mar, e além, como sua mise-en-scène pensa a problemática do corpo. Em Daïnah, o conflito do corpo está posto desde o princípio: a maneira como a protagonista e seu marido são corpos estranhos entre os brancos ricos, e a própria distinção de passabilidade entre Daïnah, mestiça, e o ilusionista, retinto. É por essa passabilidade que Daïnah transita por todos os lugares, tendo o corpo desejado e posteriormente, provavelmente assassinado. Mas não há corpo. Procura-se por todo o navio, imagina-se que tenha sido até jogada ao mar, mas nesta história de crime o único corpo encontrado é o do possível assassino, ao final.

Infelizmente os 50 minutos a que temos acesso do filme são um corte contra a vontade de seu diretor: o filme originalmente possuía 90 minutos. A estrutura lacunar desse corte “final”, porém, não atrapalha o encanto que as imagens por si só suscitam. Muito além de um filme sobre tensões sociais, Daïnah la Metisse é um filme de imagem. Grémillon, notável encenador que era, pensa cada um dos planos do filme de maneira formidável. A razão de aspecto característica da época, 4:3, nunca soa limitadora no registro dos espaços. Nota-se que todas as composições são muito bem pensadas, planos perfeitamente equilibrados, com uma iluminação que desenha e investe em contraste. Sempre buscando apresentar sua ação entre camadas, boa parte dos enquadramentos do filme têm elementos em primeiro plano, criando uma tridimensionalidade que, por sempre ter um objeto desfocado na frente, cria uma neblina na imagem que só reforça sua atmosfera de sonho (ou pesadelo).

O corpo fílmico está tomado de mistério, e o aspecto antigo da imagem, sem nitidez ou definição, com seu uso de lentes que constantemente borram as bordas do quadro alinhados ao grão, criam um efeito de suspensão encantador — efeito esse que é anabolizado na apresentação mágica do ilusionista, quando aos olhos dos brancos mascarados ele realmente parece corresponder ao clichê do personagem negro místico. A melhor cena do filme é a que também guarda seu signo melhor reconhecível: enquanto todos os tripulantes em trajes de gala cobrem seus rostos num estranhamento que constantemente remete à Twilight Zone (embora 30 anos antes da criação da série), Daïnah usa uma máscara vazada, sem esconder seu rosto, sua pele, seu corpo. É a transparência de ser uma mascarada em meio aos mascarados, mas nunca estar em seu mesmo lugar. Está no mesmo espaço, mas não pertence a ele.

“Espaço” também é um bom ponto de partida pra pensar a encenação que João Nicolau entrega em sua comédia esquisita. Apesar do cinismo e do tom excêntrico das atuações, Nicolau nunca deixa de lado o humor corporal. Como em todo bom filme de humor físico, a eficiência das piadas depende de seu registro: tudo é uma questão do que está em tela e no extracampo. É um filme gostoso de se assistir analisando como Nicolau pensa o espaço cênico, o que o enquadramento lhe dá de possibilidades para criar estranhamento e humor.

Apesar de sua narrativa excessivamente permeada por personagens brancos, o corpo aqui nunca é problema, sempre solução. Estático ou em movimento, vestido ou pelado, contido ou dançante, adormecido ou acordado. É sempre o corpo que produz a força cinematográfica que os filmes de João Nicolau precisam para gerar suas imagens.

O primeiro plano do filme é revelador: dois homens, aparentemente cientistas vestindo jalecos no que parece ser um laboratório, encaram a câmera sérios. É um plano fixo geral, quase americano. Após segundos como estátuas, mexem-se: colocam máscaras, ajeitam computadores. De repente, da parte central inferior do quadro, surge uma caixa quadrada de acrílico, sendo subida motorizadamente. É o primeiro indício desse pensamento de mise-en-scène: o que está fora de quadro pode surgir de qualquer parte, e isso será usado como estranhamento (tipo aqui) ou humor (mais pra frente). Com a aparição da caixa acrílica, há a primeira movimentação de câmera: um travelling out que acompanha a ida dos cientistas até o objeto transparente.

Eles param, inserem um item misterioso dentro da caixa e a observam. A luz avermelhada preenche o local e dá todo um tom de ficção-científica um tanto precária. That is good, diz o mais velho. Ficam ali, olhando pra dentro da caixa, em silêncio, até que, novamente do canto inferior do quadro, surge um helicóptero de brinquedo, fazendo barulho, piscando, passeando por entre os cientistas, que sequer reagem à sua presença. Aqui, o surgimento de um elemento em quadro é utilizado para fins de humor. Esse tipo de relação e pensamento de mise-en-scène do que está e não está e também do que surge em quadro vai fazer presença durante todo o filme. Essa lógica se repetirá, inclusive, através do corpo dos atores. O humor corporal é uma questão de encenação.

Em ambos os filmes, aliás, o corpo é uma questão de encenação. Filmes marítimos estranhos, aventuras inesperadas, tensões de classe, desejos de liberdade. A forma como é filmado sempre revela além do que é dito. Até por serem filmados em película e rejeitando efeitos visuais (claro, um filme de 1932 não poderia ter nenhum, mas um de 2010, sim), os filmes adquirem pra mim um caráter artesanal muito bonito. São filmes de alquimia, surgidos quase que por mágica, feitos por mãos. Cada um de seu jeito, são belos exemplos de imagem pensada, corpo presente à deriva. Viva aos filmes estranhos e misteriosos, donos de um próprio tempo, de um próprio ritmo, de uma própria pele, de um jeito único de ser no mundo.

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