Curtas-metragens que começam depois que acabam

Calebe Lopes
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6 min readAug 8, 2024

Ou como exige-se conclusões do que deveria ser mistério

“Fantasmas”, curta-metragem de André Novais Oliveira

Comecei a fazer filmes em 2012. Ao menos oficialmente (não sei se posso chamar as tentativas cometidas anteriormente de “filme”). Minha vontade de fazer cinema andava de mãos dadas com o nascimento da minha própria cinefilia. Foi uma adolescência regada a noir, expressionismo alemão, Hitchcock e várias dessas coisas que você tem contato quando tá começando a se interessar em passar da Página 2 do cinema.

Eu queria muito fazer filmes como aqueles que estava descobrindo, mas como as referências eram muito distantes, não conseguia enxergar concretude nesses filmes que imaginava, sem que passassem pelo verniz do pastiche ou da “homenagem” a que condescendentemente chamam de “filme trash”. Meus filmes existiam na minha mente, mas não sabia como fazê-los palpáveis.

“Os Mortos Vivos”, curta-metragem de Anita Rocha da Silveira

Tudo mudou quando me aprofundei no cinema brasileiro. Em especial, quando descobri que o YouTube e o Vimeo podiam ser um canal de descobertas de curtas-metragens feitos no Brasil (algo que seria muito bem representado pelo bravo Porta Curtas, que conheci pouco tempo depois).

Considero isso uma das grandes sortes que tive nesse começo de carreira. O fato de começar a ter um contato mais profundo com curtas-metragens brasileiros trazia uma concretude muito maior à minha vontade de fazer filmes que qualquer uma que longas-metragens hollywoodianos poderiam trazer. Acho até que começar a fazer curtas no Brasil querendo fazer longas como nos Estados Unidos, é receita para frustração. Mas isso é outra conversa.

“Contagem”, curta-metragem de Gabriel Martins e Maurílio Martins

Existia uma particularidade na maioria dos curtas-metragens que assisti e que me marcou muito, que é o fato de eu terminar boa parte deles sem entender o que tinha acontecido. Em parte porque eu era bem jovem e ainda me faltavam a maioria dos plug-ins pra decodificar certas coisas que só o tempo, a maturidade e a bagagem trazem, mas muito também porque esses curtas se permitiam terminar inconclusivos.

Quando eu menos esperava, no auge de uma cena estranhíssima em que não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, surgiam os créditos finais. Lembro dessa sensação inúmeras vezes, eu parado, olhando as letrinhas surgindo na tela preta, as sinapses do cérebro tentando repassar mentalmente as imagens que antecediam o fade to black, na esperança de encontrar algum sentido.

Não raras as vezes em que voltei pro começo do curta para assistir novamente. Não raras as vezes em que os filmes permaneciam comigo. Tinha uns, na verdade, que para mim começavam no exato instante em que acabavam. Após sofrer a experiência, era hora de refletir sobre ela. O filme andava com as próprias pernas, agora dentro de mim. O filme que existia dentro de mim era único, e ia comigo para todo lugar. Vários ainda vão.

“Da Origem”, curta-metragem de Fabio Baldo

E, veja bem, não me refiro a coisas tipo tentar “interpretar” o curta, entender a totalidade de seus sentidos, ou sacar qual foi a “mensagem”. Às vezes era só querer se localizar no filme. Tentar entender o porquê que a diretora escolheu terminar aquele curta de 19 minutos, com aquela imagem, aquela fala, aquele som.

De algum modo, tornava-se um exercício de entender a linguagem. Eu voltava a cena, reparava em cada coisa que acontecia, destrinchava cada decisão de câmera ou corte. Não tem forma melhor de se aprender a fazer filmes como os que você que ama, que dissecar o cadáver dos filmes que você ama. Dissequei muitos. Sigo sendo tanatopraxista do cinema.

A verdade desses filmes é que eles terminavam sendo mistério. Não concluíam muita coisa, não traziam respostas — pelo contrário, eu terminava cheio de perguntas. O mistério fica com a gente. A gente volta a ele sempre, porque ele é inconclusivo. Tudo o que te dá conclusão, te passa a ideia de que é um assunto encerrado. Fecha-se a tampa, guarda-se a caixa, joga-se a chave no mar do esquecimento.

“O Menino Japonês”, curta-metragem de Caetano Gotardo

Eu gosto mesmo é do mistério. O cinema, assim como Deus, tem a sua glória no encobrir das coisas. Infelizmente, isso se perdeu muito na última década de curtas-metragens brasileiros.

Claro, apenas sintoma de um mal maior, de uma imensa preocupação em racionalizar tudo, em entender antes de sentir, em carregar significado, em mastigar sentido, em instrumentalizar e validar a arte em prol de sua importância social, em anunciar muito detalhadamente a bandeira que seu mastro ergue antes mesmo de chegar à baía. Temos um público mal acostumado, uma crítica mal acostumada, uma curadoria mal acostumada. E, claro, realizadores mal acostumados também. Eu estou mal acostumado.

Me sinto vivendo no tempo onde até mesmo curtas-metragens precisam responder a uma demanda por respostas. O público não quer sair da sala coçando a cabeça, quer sair em estado de graça, confortável porque nos últimos 15 ou 20 minutos teve a sua visão de mundo acariciada por imagens e sons familiares. Falta o choque do desestabilizar de certezas.

“Estátua!”, curta-metragem de Gabriela Amaral Almeida

Lembro de John Carpenter falando que buscava fazer filmes que causassem a sensação de what the fuck?! na audiência. Nunca pensei que eu próprio faria filmes numa realidade onde longas-metragens precisam ser entendidos pelo público — quanto mais curtas.

Curtas-metragens agora precisam de conclusão. Precisam de um arremate, de um acerto de contas não com seus personagens, não com suas tramas, mas com o público. Findado, o filme realmente deixa de existir. Aquele mundo, aqueles personagens, aquelas vidas, não prosseguem após o surgir dos créditos finais. O ciclo se fechou, o arco foi concluído, tudo em cena devidamente mastigado e posto na boca do espectador.

Nossos curtas agora têm tese, três atos, conclusão de arco. E, claro, final feliz — todos eles têm (menos quando é pra denunciar algo, aí dá pra pesar um pouquinho a mão no fim). Os problemas foram resolvidos. Tela preta, hora do próximo curta esquecível da sessão.

Curtas como maneira de escapar da realidade (e não mais de lutar com a realidade). Curtas como pequeninas máquinas de alienação, cápsulas de autoconsolo na ideia de que o mundo no cinema pode ser pacífico e colorido. Curtas de tapinhas nas costas que dizem o que o público quer ouvir. Fim do experimento. Substituíram a interrogação por um ponto final e bateram o martelo: ao contrário do que pretendo com este texto, agora os filmes acabam

“O Lençol Branco”, curta-metragem de Juliana Rojas e Marco Dutra

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