Divino Amor (2019)

Calebe Lopes
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5 min readJul 3, 2019

Gospelfuturismo

Joana (Dira Paes) é escrivã em um cartório dum Brasil futurista popularmente cristão, embora ainda seja laico. Como boa evangélica, seu grande orgulho é tentar fazer com que casais que querem se divorciar repensem suas relações e, através da religião, voltem a ficar juntos. Junto a Danilo (Julio Machado), evangélico e infértil, o milagre que Joana busca é o de conseguir engravidar.

O primeiro ponto a se destacar no novo longa do pernambucano Gabriel Mascaro, é a frustração de expectativas que este pode vir a ser — e como isso pode ser bom. Em um Brasil de 2019, em pleno governo Bolsonaro, presidente assumidamente cristão, com um eleitorado evangélico fortíssimo, é interessante como o filme se propõe a olhar para essa realidade sem julgamentos aparentes. Em um filme onde se pode previamente esperar a paródia, a sátira, o riso preconceituoso, Mascaro lança um olhar afetuoso para com suas personagens, que demonstra um profundo estudo da cultura evangélica pentecostal brasileira sem nunca soar altivo, superficialista.

Talvez, aliás, este seja o maior gesto político de Divino Amor, olhar para o que seria um dos inimigos da esquerda do Brasil atual — a comunidade evangélica generalizada — , com um olhar de afeto. Se a burocracia, como diz o filme, não existe humanizada, a fé pode existir sim, e o olhar humanista que se lança nos personagens demonstra que Divino Amor é um filme sobre fé, antes de ser um filme sobre “um país dominado por evangélicos”.

O que Mascaro faz não é uma distopia, um futuro em que se deu tudo errado. Isso fica por conta da leitura do espectador, porque a proposta do filme me parece ser um “eles não falam tanto de um país com Deus acima de todos? toma aí o que seria um país evangélico”, sendo o filme uma provocação que se posiciona pela maneira respeitosa com que se coloca. Dá pra imaginar que, tirando as fartas cenas de sexo, seria um filme até que apreciado por evangélicos dos mais conservadores. E isso não é demérito. Em um tempo onde se exige combate e respostas nos filmes, Divino Amor a cada cena faz novas perguntas, sem rir de seus personagens até nos momentos mais ridículos, propondo uma ponte incomum para o cinema brasileiro atual, que é a da tentativa de compreender o lugar do outro através de seus sentimentos.

Com uma construção de mundo e mitologia bastante rica, e uma direção de arte e figurino que compõem muito bem o que seria essa realidade que une o high-tech brega do neon com toda a estética pentecostal das roupas sociais, das cortinas de cetim, dos vasos com plantas de plástico e do painel com cachoeira pintada, fica evidente que poucas vezes se viu esse Brasil na tela, e muito menos sem que fosse motivo de chacota. É importante salientar, aliás, como se vê Brasil nos rostos de coadjuvantes e figurantes, e como em posições de destaque encontramos corpos não tão bem representados em tela antes, como corpos gordos, negros, deficientes físicos, etc. É um futuro evangélico que deu certo em algum nível, afinal, porque até a economia parece ir bem. A própria maneira como o elemento cidade é incorporado, através de efeitos visuais bastante precisos e discretos, revela a atenção aos detalhes dessa construção de Brasil.

Curioso também como essa fábula adulta é narrada por uma criança, e como boas ideias são trabalhadas aqui e ali, como o drive-thru da oração, com seu confessionário gospel e seu momento puramente crente, de hino com direito a fumaça pra dar aquele clima. Importante notar como a religião foi institucionalizada, e que se mostra tão burocrática quanto o cartório que Joana trabalha. Para a religião, o dogma vem antes do amor, e não deixa de ser irônico que a personagem não possa entrar no Divino Amor (o culto que frequenta) sem estar acompanhada do marido. “Burocracia é igualdade”, diz Joana.

Aliás, a construção da protagonista é de uma sutileza impressionante, mérito do roteiro escrito a quatro mãos (Gabriel Mascaro, Rachel Daisy Ellis, Lucas Paraizo, Esdras Bezerra) e da condução de Dira, que forja uma personagem que ama, trepa e ora, tudo na mesma intensidade. Joana, aliás, é uma síntese do quão nocivo o etnocentrismo evangélico pode ser, porque o “amai o próximo como a ti mesmo” é aplicado de maneira deturpada (e realista) aqui: “se os meus valores são bons para mim, eles com certeza serão bons para outrem”. E é assim que a personagem tenta interromper os divórcios alheios, desrespeitando a vontade das pessoas apenas para cumprir o seu propósito de manter unida a família. E ela acredita plenamente estar fazendo o certo, e o filme nos leva a entender o seu ponto de vista. Destaque também para a construção do Danilo por Julio Machado, num trabalho de voz e corpo que também denota um estudo respeitoso do que seria a classe evangélica pentecostal brasileira.

A sensação final é a de querer ver mais, tanto pela riqueza do universo apresentado, como pela falta que alguns temas fazem de ser abordados, como a homossexualidade nesse Brasil gospel. Certamente, é um filme para ser apreciado aos poucos e com o passar do tempo. Acima de tudo, um estudo sobre a população evangélica brasileira, um interesse em fazer filme para compreender melhor o outro. Como o cinema brasileiro contemporâneo precisa disso!

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