ENTREVISTA: Felipe Bragança

Calebe Lopes
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7 min readJan 18, 2019

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Encenação, colaborações e médias-metragens

Felipe Bragança é um dos cineastas brasileiros contemporâneos que mais admiro. Sua forma de pensar cinema me inspira e ensina muito, e acho que enxergamos a coisa toda de maneira bastante próxima. Sou admirador de seus longas, tanto solo quanto os co-dirigidos com a cineasta e produtora Marina Meliande, e foi por essa fascinação com o jeito que Felipe tem de pensar imagem e som, que resolvi estrear as entrevistas aqui do blog batendo um papo com ele. Espero que gostem :-)

Adirley Queirós disse numa entrevista que tem a impressão de que todos os filmes que fazemos se voltam contra nós após alguns anos. Passados dois anos desde a estréia, como você, hoje, avalia seu primeiro filme solo?

Em cada filme eu tento coisas novas. Filmes são aventuras do espírito, investigações sobre territórios novos. Não acho que os filmes que eu faço são meus. Os faço, deixo no mundo e sigo adiante e não costumo ficar repensando sobre eles. A pulsão é adiante. Acho que é preciso sempre um pouco de esquecimento para se continuar. Tive imenso gozo fazendo o NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO. E as viagens com o filme para Sundance, Berlim, depois aqui no Brasil me proporcionaram ótimas conversas sobre cinema. Guardo essas conversas comigo e deixo que o filme tenha a vida dele própria na imaginação das pessoas.

Como primeiro filme de 2019, decidi rever Não Devore Meu Coração, e foi como uma injeção de ânimo para uma batalha. Tudo isso porque identifico no filme — e em sua filmografia no geral — um desejo pela possibilidade que me contempla muito. É o cinema como escape, mas também como potencializador de possibilidades, onde não interessa tanto o realismo ou o naturalismo, mas como os códigos de gênero podem ser utilizados para narrar seu discurso. Gostaria que você comentasse um pouco o papel da fábula e desse “anti-naturalismo” em seus filmes.

Eu, a meu ver, acho que o que chamam de realismo e naturalismo é que são formas normatizadas de escape — e que no cinema muitas vezes se tornaram apenas muletas de encenação narrativa. Um escape ao mistério que é estar vivo. O cinema que me encanta quando vejo, e que eu tento fazer, sempre tem a ver com um convite ao inesperado, ao invisível e ao porvir. Por máscaras e camadas que negam a ideia do cinema como máquina de autenticidades. Por um sentimento, mais uma vez, de aventura para o olhar. Uma aventura da luz. O realismo e o naturalismo têm algo a ver com belezas confortáveis. Eu me encanto mais com belezas desconfortáveis — que esticam o tecido do real.

“Não Devore Meu Coração” (2017), dir. Felipe Bragança

Ainda sobre essa questão naturalista, tanto em seu primeiro filme solo como no da Marina Meliande, “Mormaço”, há uma direção de atores que me parece muito específica, os atores não estão trabalhando para que pareça que “não estão atuando”, mas existe uma ideia muito assumida de encenação e demarcação de fala e corpo que por vezes pode causar um bem-vindo estranhamento ao olhar já acostumado com um cinema que simule o que se entende por “real”. Quais as razões para trilhar esse caminho, e como é o processo de escrita de roteiro e direção de elenco para alcançar essa modulação na atuação?

Penso diálogos como música. Da escrita até a edição de som. A música é verdadeira e artificial, pulsão e matemática — mas acima de tudo é um gesto de construção dimensional, um ato que constrói dimensões e não um repouso do espírito em uma superfície real. Quero e tento sempre buscar meus atores assim: nesse estado de transe, que o cinema tire eles levemente do chão e os coloque em ato mágico onde as palavras sejam melodia e ritmo e não uma expressão de uma rotina, de uma verdade anterior ao cinema.

Além de diretor, você também tem trabalhos como roteirista, estabelecendo uma relação interessante na escrita de filmes do Karim Ainouz. Quanto você identifica de si e de seu cinema nos roteiros que escreve para outras pessoas dirigirem?

Eu, hoje em dia, escrevo apenas para filmes que vou dirigir ou para o Karim Ainouz, para a Marina Meliande e para o Helvécio Martins. Com Marina e com Helvécio já co-dirigi filmes. Com Karim, fui diretor assistente do Céu de Sueli, antes de virar roteirista do filme, e estamos desenvolvendo outras vontades de filmes juntos. Cito isso para dizer que, para mim, escrever um roteiro com alguém passa por compartilhar algum tipo de visualidade, de ritmo cênico, de sentido cinemático mais do que uma questão de narrativa e dramaturgia. Ou seja — escrevo com outros diretores como forma de colaborar na visualidade desses filmes, propor sons e imagens que eles [os cineastas] vão levar adiante no set e além. Não sou roteirista, portanto, sou um realizador que gosta de escrever. E me coloco assim diante dessas parcerias.

“A Alegria” (2010), dir. Felipe Bragança e Marina Meliande

Recentemente você postou no Facebook uma lembrança do set do Não Devore Meu Coração com alguns comentários interessantes sobre o processo. Entre eles há a menção a um “não pode” do cinema contemporâneo, finalizando com uma declaração de saudade dos riscos do filme. Qual a sua visão sobre os “pode” e “não pode” do cinema contemporâneo? E no Brasil, os riscos têm sido corridos ou você percebe um certo lugar cômodo no realizar/pensar cinema?

Infelizmente, muitas vezes o cinema dito autoral e de invenção funciona por vagas, ondas, estilos que parecem que devem ser seguidos porque estão sendo considerados pelo imaginário de curadores, jurados, críticos e cineastas como o caminho mais propício, frutífero do cinema autoral seguir — na maioria das vezes se querendo ser uma antítese do cinema espetaculoso industrial. Quando isso acontece, essa emergência de um “estilo da vez”, há uma série de elementos cinematográficos que passam a ser tratados com regras silenciosas, informais, como se houvesse uma possibilidade de fórmula para se aproximar do mundo através do cinema de forma “pertinente”. Sem me alongar vou dar um exemplo: uma coisa que me incomoda muito é o medo que um certo lugar do cinema contemporâneo tem da trilha sonora incidental. Ou, para complementar, me causa uma certa preguiça um certo vício pelo minimalismo como solução de todos os problemas e desafios cênicos e de dramaturgia que um filme traz ao ser feito. Mas o cinema no mundo é diverso e no Brasil também. Há muita gente muito corajosa fazendo cinema e muitos filmes que carregam energia e vida próprias. Acho, certamente, que há um desafio no Brasil agora, que é colocado pela realidade cruel que o país enfrenta, todos os cineastas que vêem o cinema como uma forma de exprimir nosso tempo: o cinema do otimismo naturalista, do realismo afirmativo, do recorte identitário, vai ser suficiente para esteticamente desafiar o mal que agora se embrenha no imaginário brasileiro? Vai ser suficiente para nos devolver linguagem diante dessa afasia em que nos metemos todos? É uma questão sincera.

Pergunta de fofoquinha: como anda o remake de Macunaíma?

Terminei uma primeira fase de pesquisa conceitual e releituras. E conseguimos recentemente um suporte para desenvolvimento e pesquisa de campo. Até meados do ano, teremos um primeiro roteiro pronto.

“Tragam-me a Cabeça de Carmen M” (2019), dir. Catarina Wallenstein e Felipe Bragança

Segundo São Paulo na carta aos hebreus, “fé é a certeza do que não se vê e a convicção do que se espera”. Pra mim, o fantástico no Cinema sempre representará essa visão sobre a fé, e isso sempre fica reforçado quando volto aos filmes que você faz. Partindo do pressuposto que teremos anos difíceis pela frente, pergunto ao Felipe cineasta mas também ao Felipe cidadão brasileiro: no que ter fé?

Tenho fé na imaginação e na vontade humanas. Somos uma raça péssima mas nossa capacidade imaginativa e nossa vontade de ser, são verdadeiras. É o que nos resta em momentos sombrios como o que vivemos hoje no mundo.

Outra fofoquinha: esse mês estreia em Tiradentes e depois em Rotterdam o seu novo filme, “Tragam-me a Cabeça de Carmen M.”, média-metragem que você co-dirige com Catarina Wallenstein. Me fala mais sobre esse filme, sobre o que significa pra você realizar um média — formato esse que luta tanto para existir nas cada vez mais apertadas programações de festivais -, e sobre essa experiência de voltar à co-direção, dessa vez dividindo a realização com uma atriz portuguesa.

Acho o média metragem um formato especial, como aquelas novelas curtas que podem ser lidas em algumas horas debaixo de uma árvore. Um formato que valoriza uma vontade do cinema responder mais rapidamente ao vendaval simbólico que hoje nos assola. Eu e Catarina fizemos esse filme assim: com vontade de urgência mas também de leveza. A parceria com a Catarina me traz ares novos, belezas novas e desafios novos e isso me deixa mais capaz de criar. E, acima de tudo, Catarina tem uma visão musical sobre a vida e o cinema. Uma visão que dialoga com a minha. Como eu disse antes, a musica é aquilo: emergência e organização, pulsão e matemática. E assim criamos esse pequeno filme.

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