ENTREVISTA: Sabrina Fidalgo

Calebe Lopes
calebelopes
Published in
8 min readMar 4, 2019

Filmes vivos, resistência e carnaval

Sabrina Fidalgo é uma cineasta carioca em constante ascensão na bolha padronizada do cinema brasileiro. Estudou teatro e cinema, tanto no Brasil quanto na Alemanha e na Espanha. É roteirista, diretora, DJ, entre muitas outras funções. Indo do documentário ao cinema fantástico, Sabrina é inspiradora e certamente uma referência para novas gerações de cineastas. Espero que gostem do nosso papo! ;-)

Filha de artistas, você cresceu num ambiente permeado de cultura, tem uma produtora (a Fidalgo Produções), que abriu junto com sua mãe, a produtora teatral Alzira Fidalgo. Como foi, no começo, sua relação com o cinema e qual a importância e participação de seus pais nisso, sendo você filha única?

O cinema sempre esteve em minha vida. As minhas memórias mais remotas têm a ver com filmes que eu vi e salas de cinema que frequentei desde muito pequena. Como sou filha de artistas, pessoas de teatro (o dramaturgo Ubirajara Fidalgo e a produtora Alzira Fidalgo, criadores do T.E.P.R.O.N — Teatro Profissional do Negro), sempre convivi com arte e a cultura de forma muito natural. A verdade é que cresci numa bolha artística e política, mas isso foi ótimo, porque foi minha formação. E o fato de ser filha única só fez potencializar as atenções para comigo nesse sentido também.

Observando os créditos durante toda a filmografia, dá pra notar uma mudança muito significativa dos gêneros que compõem as equipes. “Cinema Mudo” (2012), por exemplo, tem uma equipe majoritariamente masculina, algo totalmente oposto ao que vemos nos nomes que compõem “Rainha” (2016). Gostaria de saber mais sobre todo esse processo de compor equipes com mulheres.

A verdade é que esse sempre foi um desejo meu. Nunca trabalhei bem com homens, principalmente aqueles que ocupam o topo da cadeia evolutiva de um set. Com poucas excessões (e elas existem, graças a Deus!) os homens sempre tentaram me convencer de que os meus pontos de vista estavam errados. Sabe aquela coisa de mansplaining? Os processos com certos homens na equipe sempre foram muito desgastantes. Mas tenho parceiros maravilhosos como o Vítor Kruter que faz o som dos meus filmes desde “Personal Vivator” e é incrível! Em Rainha tive mais autonomia de escolher a minha equipe, que é praticamente a mesma até hoje. Trabalhar com mulheres para mim é muito mais saudável, tranquilo, prazeroso e pacífico. E a tendência é aumentar ainda mais a equipe de mulheres nos meus trabalhos.

A atriz Ana Flavia Cavalcanti em still do filme “Rainha”

Em recente entrevista à Djamila Ribeiro pela Carta Capital, você afirma que faz “filmes para as pessoas pretas com a cara do nosso país”. Como você pensa a questão racial nos seus filmes e o que mudou de “Black Berlim” (2009) pra cá quando o assunto é representatividade?

Uma das razões pelas quais eu decidi fazer filmes era poder contar histórias que eu não via sendo contadas. Eu cresci vendo uma enxurrada de propagandas eugenistas seja no cinema, na TV, revistas e jornais. Eu via um país negro e mestiço com um audiovisual que vendia um ideal de “beleza” e “inteligência” branco. Ainda é assim até hoje, mas cada vez com menos sucesso, graças a Deus. Quando eu era pequena eu odiava ver atrizes maravilhosas como Zezé Motta interpretando escravas e empregadas. Não conseguia entender a razão disso, porque ao mesmo tempo meus pais me bombardeavam com imagens de negros americanos empoderados. Então eu decidi que escreveria minhas próprias histórias e meus próprios personagens para esses atores. E outra, eu não “me descobri negra” há dois anos atrás, eu já nasci negra e tendo total consciência sobre a necessidade de representatividade desde sempre. Em relação a mim, nada mudou muito de “Black Berlim” para cá. Mas muitos avanços na sociedade aconteceram nesses últimos 10 anos que separam esse filme do momento sócio-político que nos encontramos agora . A pauta da representatividade e do racismo se tornaram a ordem do dia, a sociedade discute essas questões, reivindica os seus direitos, os seus espaços e está pautando as mídias. Ainda há muito o que melhorar, mas esse é um caminho sem volta porque grande parte da sociedade despertou. E digo isso com convicção, mesmo nesse terrível momento político em que nos encontramos.

Na mesma entrevista você fala sobre Rainha se basear “em mil referências” — entre elas o fotógrafo francês tão importante para Salvador, que é o Pierre Verger. Gostaria de conhecer mais o quê e quem te influenciou e inspirou em seus filmes, resultando diretamente no seu cinema.

Eu trago muitas referências no meu cinema, que vão desde pinturas, fotografias, videoarte, música, performance, moda, videoclipe, literatura, teatro e o cinema em si, é claro. Eu amo o trabalho de Pierre Verger, acho um assombro toda a sua obra e o seu estilo. Em “Rainha” pensei muito nele e no trabalho do Arthur Omar para pensar aquele carnaval preto e branco. Mas também trago referências de videoclipes icônicos dos anos 90 que foram dirigidos por grandes fotógrafos de moda como “Being Boring” dos Pet Shop Boys que é praticamente um filme do Bruce Weber, passando por filmes como “A Noite” de Michelângelo Antonioni, “Noites de Cabiria” de Fellini ou “Ascensor para o Cadafalso” de Louis Malle. Em “Black Berlim”, por exemplo, tem muito de Spike Lee e da música eletrônica fusion que eu ouvia muito na Alemanha naquela época, uma musica feita por uma galera preta muito foda de Londres, como o 4Hero e Ursula Rucker. Agora, no meu novo trabalho, “Alfazema”, flerto um pouco com o estilo Almodóvar, principalmente da primeira fase dele. Enfim, são muitas inspirações e referências. E todos os dias eu descubro novos artistas que me ascendem uma nova luz em outros lugares nunca antes pensados.

Seus filmes têm uma assinatura autoral forte, a câmera na mão sempre acompanhando a ação, o som trabalhado quase que em uma chave hiperrealista, a montagem sempre assumindo uma descontinuidade muito enérgica. Gostaria que você discorresse sobre linguagem, sobre estética, sobre a forma de seus filmes.

Eu ainda estou numa busca pela forma. Sou libriana com ascendente em Leão, logo sou uma esteta assumida. Para mim é muito importante pensar linguagem e estética e chegar a um estilo indefectível, ao meu modo próprio e único de contar diferentes histórias, de diferentes gêneros. Gosto da câmera viva, que corre, respira, pula, pára e segue. A câmera-personagem. Mas tudo com estilo. Gosto da beleza, a beleza me inspira. Mas confesso que estou ainda nesse processo. Não diria que tenho um estilo definido, mas estou, sim, na busca dele. Tudo é um processo.

Você tem uma filmografia consistente, indo do documentário ao cinema de gênero, sempre entre formatos de curta e média metragem. Sendo assim, gostaria que comentasse como está o andar da carruagem de Cidade do Funk, seu primeiro longa de documentário, e de Bolero, de seu vindouro longa de ficção.

Cidade do Funk é um projeto muito antigo, muito trabalhoso e minha meta agora é colocar essa criança para fora! Mas não é o tipo de projeto que dá para fazer numa guerrilha louca, tem que ter investimento sim, tem que ter dinheiro sim, parcerias e tudo mais. Já temos a Pandora Filmes como distribuidora nas salas de cinema do Brasil, ganhamos o edital F.A.M.A (Fundo AVON para Mulheres do Audiovisual) e estamos conversando com vendedores internacionais. É coisa grande, por isso demorada. E para mim esse pulo do gato para longas vai configurar um outro patamar, onde não mais será viável fazer projetos sem dinheiro. Quanto a Bolero, estamos na fase de desenvolvimento com parceiros incríveis, mas prefiro não revelar muito sobre esse projeto.

As atrizes Bruna Linzmeyer e Shirley Cruz no set de “Alfazema”

Em fevereiro acabaram as gravações de Alfazema, seu segundo filme da trilogia carnavalesca que tem Rainha como primeira obra. Me fala mais sobre essa trilogia, como ela nasceu e os caminhos que tomará.

Eu sou carioca da gema e sempre vivi o carnaval. Faz parte da minha vida. Eu sou o tipo de pessoa que espera o ano inteiro pelo carnaval. Me emociono, acho lindo, não existe nada parecido com isso em nenhum outro lugar do mundo, é coisa nossa, o maior expoente da cultura brasileira. E justamente por isso sinto falta de grandes elucubrações sobre o tema. Daí resolvi me debruçar sobre o carnaval para estudar suas subjetividades que vão desde o lamento, a melancolia e a superação, passando pela euforia, loucura, sexualidade, liberdade, etc. O “Rainha” é um ensaio sobre superação, vida e morte. É um carnaval soturno, melancólico e elegante naquele branco e preto que torna tudo meio prateado, noir, sombrio, aterrorizante, atemporal, quase um “vaudeville”…Já “Alfazema” é uma outra onda, totalmente oposta. É um filme contemporâneo, sobre o agora, sobre como nos relacionamos com a nossa sexualidade e liberdade nesse hiato de 5 dias, onde tudo, de repente, deixa de ser pecado, mas volta a ser no restante do ano. Enfim, e ainda há o projeto do “Folia” o terceiro vértice dessa trilogia que será o trabalho mais intimista de todos.

Dos 142 filmes brasileiros lançados nos cinemas em 2016, 138 (97,2%) foram dirigidos por pessoas brancas, sendo 107 (75,4%) por homens. Em 2018, após um hiato de 34 anos, voltamos a ter um filme dirigido por uma cineasta negra, a Camila de Moraes, nos cinemas. Em uma arte onde carecemos constantemente de referências, em um mercado e meio totalmente classicista, machista e racista, como é ser uma cineasta negra nesse Brasil de 2019?

Na verdade o hiato continua porque o filme de Adélia [Sampaio, diretora de “Amor Maldito”, 1984] era um longa de ficção e até agora nenhuma outra diretora negra assinou sozinha a direção de um filme de ficção com distribuição nos cinemas. É uma vergonha internacional. Um país que tem uma cinematografia altamente excludente, racista, machista e homofóbica fomentado por leis de incentivo, usando dinheiro público, dinheiro do povo. Eu não fico pensando muito como é ser isso ou aquilo, eu trato de realizar o que eu quero e exigir o que é meu de direito. Obviamente muitos não devem gostar, mas não estou nem aí para esse tipo de gente. Me interessa hackear o sistema e mudar, de uma vez por todas, esse status quo cafona, retrógrado e colonizado.

Deixe claps para expressar o quanto você gostou. Quanto mais palminhas, mais eu sei que você curtiu o texto :)

--

--