Escritos além da câmera
Ou saudade da época em que cineastas tinham blogs
Prepara-se. Este texto aqui será uma bagunça. Tudo porque tenho pensado em usar mais este espaço aqui como um diário. Compartilhar, entre um texto mais elaborado sobre cinema ou crítica, algumas coisas mais soltas, sobre a experiência de fazer filmes ou até viver mesmo. Ainda não sei como ou se farei, mas a ideia é transformar isso aqui em um “blogspot” de alguém que faz filmes.
Parte do interessante na experiência de fazer filmes também é ver como eles reagem ao mundo. Você vai percebendo que o mundo também reage a eles — e é a partir dessas reações sempre tão distintas, que o próprio filme te cochicha sobre si coisas que você jamais imaginou.
Coisas não apenas sobre ele, mas sobre você também. Fazer filmes é acessar o próprio inconsciente — é por isso que não acredito em cineastas com muita certeza das coisas. Fazer filmes também é acessar o inconsciente de um grupo de pessoas — é por isso que (amo mas também) questiono o conceito de autoria.
Quando você percebe que as pessoas reagem de maneiras diversas, nota que muito pouco da recepção de um filme tem a ver com suas intenções para ele. É sempre uma troca. Ou na verdade uma soma: o filme é feito também por quem o assiste e deposita nele suas bagagens e vivências.
E é aí que a gente ganha a consciência de que cada filme é produto de distintas bagagens — e que outros(as) cineastas não vão enxergar cinema da mesma forma que você. Sempre me decepciono com comentários estúpidos feitos por cineastas que acho geniais. Sempre me surpreendo com comentários geniais feitos por cineastas que acho estúpidos. Tudo isso, com o tempo, foi me enchendo de certo fascínio pelo que cineastas têm a dizer. Não sobre seus filmes, não sobre a vida, mas talvez sobre as intersecções entre o pensar cinema e o sobreviver enquanto isso.
Buscar entender melhor quem são essas pessoas, de onde elas vieram. O que pensam, o que amam, o que as faz sofrer. Qual foi o primeiro amor da vida daquele cineasta que dirigiu aquele filme que amo? O que assustava aquela diretora de terror quando criança? Quando não estão amando cinema, o que amam os cineastas brasileiros? São amados de volta?
A gente vai embora e, com sorte, os nossos filmes ficam. Outro dia, na terapia, falei que de certa forma fazia filmes pra não ser esquecido após partir. Só que fazer filmes não é sinônimo de imortalidade. Filmes se perdem, se esquecem, se apagam. Mas continuam sendo maiores que nós, que os fazemos. Hoje tenho filmes de Jean Garrett ripados com a logo do Canal Brasil no canto do quadro para assistir. Mas e o que ele pensava? Claro, nada disso é realmente importante. Porém confesso que adoraria se houvesse um jeangarret.blogspot.com.
Muito do que aprendi sobre cinema foi vendo ou lendo entrevistas com cineastas. No início, quando não me achava um, eu só desejava ser como eles. Via repetidas vezes as entrevistas, copiava ideias, trejeitos, modos de falar e cruzar as pernas. Roubava-lhes a visão de cinema, aprendia a emular suas (supostas) inteligências. Quando comecei a ir para festivais como realizador, passei um bom tempo performando como meus cineastas do coração falavam. Deveria ser uma visão estranha a de quem me assistia: aquele guri tentando falar difícil, tentando ser um intelectual, tentando fantasiar-se de fazedor de filmes.
Aprendi muito assistindo ou lendo cineastas, mas percebi que não era elogio quando me contavam que eu lembrava fulano ou ciclano falando — por mais que eu amasse fulano ou ciclano. Compreendi que queria ter voz própria, e que me blindar em um mar de citações ou performances blasé não me levariam a nada, a não ser talvez soar arrogante ou passar uma imagem que não era minha. Não era eu. Fazer filmes também é dar a própria cara a tapa.
Me distanciei por um tempo disso tudo. Tentei me estudar, observar como eu falava sobre cinema com amigos na mesa de bar. Eu falaria assim quando chegasse a hora dos festivais ou das entrevistas, sem me importar se soaria juvenil ou ingênuo demais. Entendi que poucas pessoas nos debates estariam interessadas realmente em discutir cinema, que boa parte queria tirar dúvidas ou apenas problematizar algo. “Não é bem uma pergunta, é mais um comentário”. Okay, vai lá.
O gosto, porém, por descobrir o que cineastas pensavam não saiu de mim. Gosto mais de assistir debates com os cineastas que amo do que participar deles. Consumo tudo o que eles produzem — inclusive as antiguidades. Sou um exímio leitor de blogs antigos, espaços fantasmas da época em que era comum escrever os próprios pensamentos em diários virtuais. Blogs com ideias soltas, com comentários sobre filmes, com descrições de set de filmagens, com anúncios de lançamentos ou exibições, com relatos de idas a festivais. Notas sobre públicos, notas sobre qualidade de projeção, notas sobre o que se tem feito enquanto se faz filmes. Leio e releio sem parar, quando quero me inspirar ou me sentir cineasta. Essa sensação de se dar conta que hoje você faz exatamente a mesma coisa que aquela pessoa que por tanto tempo você admirou e sonhou em ser igual, é doida.
(Okay, ainda sou menos bem sucedido que a maioria deles. Mas isso não vem ao caso aqui.)
Hoje me surpreendi com um tuíte aparecendo em meu feed de um cineasta que eu nem sabia que tinha Twitter. Fui stalkeá-lo, naturalmente. Entendi que esse perfil não era muito usado — foi ressuscitado em virtude de um filme novo seu, que está entrando em cartaz nos cinemas. O perfil antigo, porém, era uma boa janela para o passado. Lá tinha o link de um blog mantido por este cineasta há muito tempo: sua última publicação data de exatos 10 anos atrás.
Rato de blogs moribundos de cineastas brasileiros que sou, me animei. Ali tinha muito conteúdo para viver o meu hobby de arqueólogo de costumes de um cinema brasileiro que passou antes que eu chegasse. A publicação mais recente, porém, não era sobre cinema: uma confissão de alguém que estava apaixonado por outra pessoa e dizia, publicamente, que tudo o que postava nas redes sociais da época era apenas uma indireta para essa pessoa. Um diretor que admiro, tal qual um adolescente no Tumblr, escrevendo sobre estar apaixonado.
Há um comentário na publicação, clico para lê-lo: é uma frase postada 1 ano depois, escrito “ai, eu te amo tanto!”. O nome de quem assina, é um anagrama para o sobrenome do homem que hoje é marido do cineasta-poeta. Imaginei que talvez tenha demorado 1 ano para que se apaixonasse de volta e namorassem. O importante é que aquele post-desabafo, carta em garrafa jogada ao mar, chegou ao destino. Germinou e frutifica 10 anos depois.
Eles não sabem, mas serão boas companhias para mim pelos próximos anos. Os conheço, mas jamais contarei que tanto tempo depois ainda têm leitores seguindo seus rastros virtuais. O florescer dos cineastas brasileiros do hoje está todo em blogs. Os de amanhã estarão em TikToks e canais de YouTube.
Isso tudo me deu vontade de me abrir mais aqui neste espaço aqui. Mesmo que ninguém leia e só procurem os textos críticos ou mais ensaísticos. Me deu vontade de postar algum poema que escrevi e que pouco compartilho com as pessoas. Então se você estiver lendo este texto daqui a alguns anos, saiba que isto aqui é para você. Como uma cápsula do tempo que ainda não sei se revelará o início de uma trajetória de sucesso ou um potencial fracasso. Não ligo. No fim, acho que ainda tô querendo performar os cineastas que amo. Tenho até blog.
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