O cinema sem passado

Calebe Lopes
calebelopes
Published in
5 min readAug 2, 2024

Ou como filmes de heróis esqueceram a caixa de ferramentas do cinema

Homem-Aranha (2002)

Uma coisa que sempre penso é que bons filmes te levam para outros filmes. Me apaixonar por Hitchcock é o que me fez amar, posteriormente, De Palma. Foi por eu amar tanto Cronenberg, que me encantei com Altered States. De alguma forma, minha fascinação por Speed Racer que me fez assistir sorrindo Hausu. E conhecer na adolescência o cinema de Tarantino me fez descobrir blaxploitation, spaghetti western e giallo.

Perceba, não estou falando de referências ou citações diretas. Apenas filmes que te puxam pra outros, que aguçam seu paladar e te fazem se relacionar de outra maneira com o cinema, que te deixam querendo mais daquilo. Filmes que não se bastam.

O cinema de super-heróis em geral (salvo raras e boas exceções) anda tão esquemático, tão pasteurizado, que isso quase se perdeu.

Você vê filmes do Marvel Cinematic Universe e lembra de outros filmes do MCU. Quando associa a filmes fora dessa bolha, geralmente vem em forma de alguma piadinha ou referência direta em alusão a algo de cultura pop. Mas não existe uma sensação de que esses filmes são continuidade de outros filmes, continuidade do cinema como um todo — tem um vídeo de George Miller que é ótimo pra se pensar isso, clique aqui.

Hulk (2003)

O que me leva de volta a algo que sempre converso com amigos: os primeiros filmes hollywoodianos de super-heróis têm algo que nunca mais voltará, que é justamente a inexistência do “gênero”.

Pelo pioneirismo, faltava a eles referências de outros filmes de super-heróis. Não havia uma ideia tão engessada de se encaixar em um formato de produto industrial que deu certo. Filmes de super-heróis não eram filmes do gênero “super-herói”; eram filmes de ação, ficção científica ou fantasia.

Isso trazia uma certa liberdade, que somada ao fato de inicialmente bons cineastas terem sido chamados para alguns desses filmes (Richard Donner, Tim Burton, Sam Raimi, Bryan Singer, Ang Lee, Guillermo Del Toro, etc.), acabava por entregar filmes de quadrinhos que se inspiravam em bons filmes e cineastas que nada tinham a ver com super-heróis.

Altered States (1980)

É por isso que o Hulk de Lee dialoga tão bem com o já citado Altered States, de Ken Russell, e é todo construído em cima de mitologia grega e psicanálise.

É por isso que em um determinado momento de Homem-Aranha, de Sam Raimi, o filme “para” pra gente acompanhar cidadãos de Nova Iorque olhando diretamente para a câmera, em locações reais, ruas sujas, falando sobre o herói para uma reportagem que nunca vem, um interlocutor que nunca vemos — com uma “quebra de quarta parede” que parece saída de algum dos primeiros filmes de Spike Lee.

E é por isso que, inesperadamente, os uniformes do primeiro X-Men remetem tanto à ficção científica italiana Planeta dos Vampiros, filme de Mario Bava.

Aquilo não é feito para que o espectador reconheça o easter egg. É feito porque trabalha com o cinema como matéria-prima, porque recorre a filmes como caixa onde buscar as ferramentas que precisa para construir o seu próprio.

X-Men 2 (2003)

São blockbusters, são “parque de diversão”, são “para se divertir”, mas também são filmes de cinema que te levam para outros filmes. Em determinado momento, o próprio Marvel Studios quis fazer isso — em especial quando se ventilou tanto por aí que Soldado Invernal beberia muito do cinema dos anos 1970, e que seria um thriller que referenciava Operação França (lembram disso? Faz 10 anos).
É pura perfumaria para vender, para tentar legitimar aqueles filmes como “cinema de verdade” — algo que já não fazem, porque o público de hoje quer nada além que o divertido festival de participações especiais e nostalgia.

Planeta dos Vampiros (1965)

O que existe em referência ao cinema ali é casca, superficialidade, a camada mais óbvia de todas, a comparação mais rasa. Câmera na mão, correria e um clima de paranoia? É claro que isso é Operação França! Não tem nada além da citação. Porque eles não entendem que fazer um filme que te leva para outros filmes pouco tem a ver com referenciar cena ou fala de personagem. Tem a ver com mise-en-scène. Ou melhor dizendo, a ver com um roteirista ter a sacada de escrever uma sequência onde cidadãos falam sobre o impacto que um maluco que solta teias pela cidade tem tido na vida deles, e um diretor ler aquilo e pensar: “que tipo de filme registrou bem essa relação das pessoas comuns com o bairro em que vivem?” e sair dali algo tão original que nunca sequer foi replicado posteriormente.

Porque nem sempre referências são fan service, nem sempre é piscadela para o público. Às vezes é só de onde artistas bebem para vomitar algo próprio.

Faça a Coisa Certa (1989)

Deixe claps de 0 a 50 para expressar o quanto você gostou. Quanto mais palminhas, mais eu sei que você curtiu o texto :)

--

--