O Dito e o Não-Dito

Calebe Lopes
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6 min readNov 7, 2023

Ou como é importante se perder nos filmes

“Eu não vim para explicar, vim para confundir”. Frase vez ou outra atribuída a Jesus Cristo, na real foi dita pelo Chacrinha. Lembrei dela durante minha já tradicional revisita a Blade Runner, filme a que volta e meia retorno para aprender uma ou duas coisas sobre construção de atmosfera no cinema.

Experiência curiosa é a de ver, em comparação, o corte para cinema de Blade Runner de 1982 e o corte final do diretor de 2007. Fazia isso agora há pouco e recomendo muito. Na verdade, ainda o estou fazendo — durante o corte de 82, tive uma vontade muito grande de escrever algo aqui no blog inspirado pelas diferenças entre as versões do filme de Ridley Scott.

Pausado o DVD, cá estou eu, incentivando que todes assistam a versão que o próprio diretor renegou. Para quem não sabe, Blade Runner passou por diversos pepinos após sua finalização, o que resultou em um filme com diferentes cortes, produzidos em diferentes décadas.

O corte de cinema original a que me refiro, é o corte clássico de interferência do estúdio: quando viram o que Scott pretendia fazer com sua narrativa misteriosa e etérea, os executivos da Warner temeram que o filme fosse deveras confuso, e deram um jeito de chamar Harrison Ford novamente para gravar um voice over que ajudasse a situar o espectador naquele universo.

Situar, aliás, em um filme que já tem um letreiro no começo com essa função. Partindo da lógica das histórias noir com um detetive-narrador, acharam por bem colocar Deckard, personagem mais que confuso naquele universo, para guiar-nos por ele. Existe algo de aprendizado nessa história, porque a impressão que fica é a que esse corte explica demais, muito mais do que deveria — o que faz com que parte do encanto do filme se perca, por melhor que seja construído seu universo em áudio e imagem.

Deckard não apenas explica o que estamos vendo, mas dá detalhes e informações complementares que tiram parte da graça de não compreender totalmente Blade Runner, que é tentar elaborar um background que traga um mínimo sentido a todas as estranhezas que vemos em tela.

Isso tudo me faz pensar no quanto é interessante se sentir desorientado em um filme e o quanto não compreender exatamente tudo o que se vê ajuda na atmosfera. Não, não será mais um texto falando de Sontag. Sim, eu sou contra a interpretação. Mas o que me leva a pensar nisso tudo é uma experiência recente que tive, durante a montagem de meu último curta-metragem, o ainda inédito (e em fase de finalização) Ataques Psicotrônicos.

Ataques foi escrito em 2021, filmado em 2022 e tem sua estreia desejada para 2024. Isso significa que o filme maturou durante um bom tempo em cada uma de suas etapas. Foi, de longe, o processo de montagem mais demorado que tive em um filme. Ou melhor, o em que tivemos mais tempo para pensar todas as possibilidades que a montagem nos apresentava para levantar o filme. Editamos eu e Klaus Hastenreiter, amigo cineasta e co-montador, num processo que se aproveitava do longo respiro que tínhamos para discutir cada corte. Testar, testar, testar. Virtudes da ilha de edição digital. Faz assim, desfaz, faz assado, vê daqualé.

Originalmente, Ataques também era um filme com voice over — muito inspirada pela narração de First Reformed, de Paul Schrader. Uma das referências do filme. Durante o processo de escrita e após colher feedbacks, decidi retirar toda a narração. Ela explicava demais o filme. Era bom que fosse lacunar.

Ainda assim, Ataques era um filme com bastante diálogo. Dois personagens em um único cenário evocava o tipo de filme esquisito e teatral que me parecia funcionar com verborragia. No meio disso tudo, o desejo de fazer diálogos um tanto confusos, nunca realistas, misturando conceitos técnicos e pretensamente científicos (trata-se de uma ficção-científica bem fantasiosa e soft na parte do “científica”) e uma ou outra estranheza dos próprios personagens.

Gravado o filme e iniciada a pós-produção, nem tudo funcionava. Até para ser estranho é necessário precisão. Batemos cabeça por um tempo sobre o que fazer com aqueles diálogos. Primeiro porque desde sempre eles foram certa “encheção de linguiça” — meu foco enquanto realizador sempre esteve mais na atmosfera do filme, não exatamente nos personagens e em sua dramaturgia. Segundo porque além do risco de explicar mais, também corríamos o de atrapalhar o ritmo — algo importante de se pensar em filmes narrativos, crucial em curtas-metragens.

Foi aí que, durante os longos meses que passamos com esse filme, recebemos a visita de Amenar Costa, um amigo que, entre uma cervejinha e outra numa maravilhosa conversa sobre cinema, nos contou que Only God Forgives, filme de Nicolas Winding Refn, havia sido gravado com muito mais diálogos do que os que estão no corte final. Não era um filme tão silencioso, só tornou-se assim a partir da montagem, quando Refn teve a ideia de jogar os diálogos fora e utilizar-se dos momentos em que os atores estavam em silêncio em cada take. É um filme que usa bastante do efeito Kuleshov, e onde a atmosfera importa muito mais que a história contada.

Isso nos levou de volta à mesa de edição, buscando maneiras de suprimir os diálogos. Daí vieram saídas ótimas, tanto cortando falas fora quanto brincando de criar diálogos novos a partir da montagem: pergunta x era respondida com resposta da pergunta y, criando novos sentidos e nuances ao que acontecia em cena que nem estavam no roteiro. A partir da montagem, até subtextos quanto ao arco dos personagens foram criados. Tudo isso, confundindo, bagunçando as explicações. Um novo filme surgia a partir da ilha de edição.

O curta não deixou de ter diálogos ou de ser um tanto verborrágico — faz parte do DNA dele, da sua mise-en-scène. Isso eu aprendi na prática mas compreendi ainda mais com essa experiência de estar vendo dois cortes de Blade Runner. É um exercício interessantíssimo, tanto para quem escreve quanto para quem dirige ou monta filmes.

Tem informações sobre a história, os personagens, o universo ou a mitologia que não precisam estar explicadas ou representadas através de diálogos ou narração. Essa falta de maiores explicações adiciona uma camada a mais de mistério ao filme, como se ele fosse um mundo à parte, que funciona independente da minha visita, com suas regras próprias e lógica particular. Estou assistindo a vida acontecer a partir dele como penetra, como um voyeur: o filme não está a meu dispor, eu que tento acompanhá-lo, e é muito bom se sentir perdido dentro de uma sala de cinema. Agora, com licença, vou voltar ao filme.

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