Swallow (2019)

Calebe Lopes
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6 min readApr 5, 2020

O desconforto do desejo

Se pudesse definir com uma palavra minha experiência vendo Devorar (Swallow), primeiro longa solo de Carlo Mirabella-Davis, seria “inquietante”. Meu notável desconforto ao remexer na cadeira ou ao balançar incansável da perna direita durante o último terço do filme se dava pelas inúmeras questões que ele me suscitava durante sua precisa duração. Curioso, já que a princípio o conflito a que se propõe — e até mesmo sua história — foi retratado diversas outras vezes pelo cinema, mas nunca nesta intensidade. De uma premissa simples, Swallow me engatilhou diversos desconfortos comigo mesmo, e quão rica é a experiência dos filmes que despertam questões sem necessariamente colocá-las de maneira excessivamente didática em tela.

O filme acompanha a história de Hunter (vivida com um minimalismo impressionante por Haley Bennet, que percebi com enorme surpresa ser a mesma atriz que interpreta a diva pop da comédia romântica Letra e Música), dona de casa que é casada com o ricaço Richie (Austin Stowell), e que, ao descobrir que está grávida, começa a desenvolver uma compulsão por engolir objetos variados.

O thriller com ares de body horror tem um roteiro muito preciso, muito feliz em suas escolhas de caminhos narrativos e pela maneira como desenvolve o arco da protagonista. Mesmo demonstrando certa insegurança através da necessidade de ser óbvio e até didático aqui e ali, o texto do próprio Mirabella-Davis segue com maestria a estrutura d’A Promessa da Virgem (uma espécie de “Jornada do Herói” só que com energia feminina. Você pode ler mais sobre em um belíssimo artigo escrito pela roteirista Jaqueline M. Souza clicando aqui.) É tudo muito bem esquematizado: os primeiros 10 minutos apresentam com sucesso o universo opressor em que a protagonista está inserida, e aos 20 surge a principal questão que o filme se propõe a investigar: Hunter é feliz ou apenas tenta se convencer disso?

No primeiro ato do filme não apenas o conflito é proposto como as principais discussões são colocadas na mesa. É fácil assistir aos minutos iniciais de Swallow e identificar questões como opressão de classe e gênero, solidão, repressão, humilhação, silenciamento e, principalmente, a toxicidade e abuso em uma relação amorosa heterossexual que sim, tem algum afeto, porém carece de conexões. Richie, o marido de Hunter, é um bebezão mimado e cercado por privilégios, que sim, ama a esposa, porém é egoísta e controlador demais para perceber suas carências mais óbvias. Hunter, que veio de “lugar nenhum”, não tem formação profissional e pouca experiência de vida, é fadada a ser “dona do lar” e cuidar da belíssima casa de arquitetura moderna onde moram, além de cozinhar para o marido e coisas do tipo. Seus dias são solitários e deslocados, e é também mérito do roteiro a forma como trabalha a naturalização desse lugar que Hunter ocupa segundo o machismo de Richard, um passivo agressivo boçal.

Importante também observar como é a relação de Hunter com seus sogros, como ela é isolada da sociedade em geral, e como sua relação com quem está ao redor sempre é movida a cabeça baixa, timidez e inúmeros pedidos de desculpa e agradecimentos automáticos por tudo. Um dos momentos onde mais o texto (e a excelente performance de Bennet) ressalta isso é na esquisitíssima cena do abraço, e o quanto aquele momento parece dizer sobre como se trata e como se enxerga a solidão masculina e a feminina.

Não apenas de texto vive o filme, aliás. Swallow conta com um invejável time a desenvolver esteticamente esse roteiro, através de direção, fotografia e arte trabalhando para retratar toda a opressão que Hunter sofre através de linhas e limites, além da interessantíssima utilização de reflexos em diversos momentos da trama, que por si só já se coloca quase que como uma subtrama na narrativa visual. Os planos são frios, enquadrados de maneira rigorosa, com pouca movimentação e com a câmera raramente saindo de seu eixo. A monotonia e a inadequação daquela vida estão presentes em cada composição de quadro.

Os ecos com O Bebê de Rosemary são óbvios, a maneira como o filme de Polanski já sedimentava seu terror numa narrativa sobre a falta de controle de uma mulher sobre a própria vida e o próprio corpo estão aqui, porém Swallow consegue se afiliar a uma outra tendência recente, a dos filmes (em sua maioria dirigidos e/ou escritos por mulheres) de horror contemporâneos sobre a necessidade de comer, a necessidade de saciar uma fome feminina no cinema de gênero. Esse olhar faz parte da série de artigos The Women Who Shaped the Horror Genre, escrita por Sady Doyle (@sadydoyle) cujo capítulo que trata sobre essa fome, pode ser lido traduzido por Camila Novaes Maia clicando aqui. Recomendo muito.

Em Swallow a necessidade de comer, de engolir, vai além dos “desejos de grávida”, colocando-se como uma manifestação do querer, quase que uma tentativa de ter controle sobre algo. Para além do esforço, há a ideia inconsciente do ciclo de colocar para dentro e depois colocar para fora, movimento que segue não apenas a lógica da gravidez, mas também se coloca como prova desse controle de si: o que Hunter engole passa a ser um bibelô para ela, um troféu colocado num altar. Para Hunter, fazer algo inesperado é exercer o seu livre arbítrio, é se distanciar do que os olhares ao redor esperam dela. Isso diz muito sobre o quanto o ser mulher é condicionado à repressão do querer, e o quanto se espera que elas sempre reajam à tudo sorrindo. Hunter é colocada numa caixa padronizada, num lugar tão naturalizado que não há espanto. E não deixa de ser curioso que o olhar de humanidade para com a personagem principal venha da psicóloga e de Luay, personagens de iguais mãos atadas cuja relação com a protagonista será atravessada pelo trabalho, logo, pelo cerceamento do capital. A partir do momento que se ultrapassa a linha, tudo é cortado.

Swallow é um filme que parte de lugares conhecidos para refletir com absoluta profundidade sobre, entre tantas outras coisas, o lugar da mulher na sociedade patriarcal, causando extremo desconforto durante o trajeto: tanto o incômodo pelas reflexões que impulsiona, como o incômodo visual e sonoro, percorrendo por tantas imagens repulsivas, levando o espectador para lugares de onde não se pode sair sem o autoquestionamento. Como se não bastasse todo o passeio sombrio que propõe, Carlo Mirabella-Davis ainda encerra seu filme com um longuíssimo e absolutamente rico plano que se estende por todos os créditos finais. Não é difícil ver esse plano e tentar projetar sobre ele tudo o que vimos durante os 90 minutos anteriores da projeção. Melancolia pura.

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