Vislumbres de um cinema artesanal

Calebe Lopes
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6 min readJul 28, 2019

A potência da invenção para Larry Cohen e Jean Garrett

Excitação, de Jean Garrett

A noção de “cinema artesanal” aponta para um cinema produzido distante do ideal de fabricação mecânica, remetendo à polarização da própria revolução industrial, quando se separou o que era indústria do que era manufatura. Portanto, podemos entender o artesanal como um cinema de poucos recursos, normalmente equipe não muito extensa, feito com um cuidado e esmero que escapa das relações de larga escala do cinema praticando pelos grandes estúdios. Segundo o pesquisador André Rui Graça, “apercebendo-se que nunca poderiam igualar outras produções em termos tecnológicos, alguns cineastas desde os anos 60, de forma mais ou menos consciente (como tem sido agora nos últimos anos explicitamente declarado), apostaram numa linha discursiva baseada na premissa de fazer das fraquezas forças. Este discurso — que é o discurso do presente e não necessariamente do passado — parte do princípio que reverteram em seu favor aquilo que de outra forma seria um obstáculo e assimilaram essa circunstância material enquanto característica única e diferenciadora.”

Os exemplos de mulheres e homens que se dispuseram a um cinema de invenção mediante a falta de recursos são variados mundo afora, mas aqui me interessa, de algum modo, linkar o trabalho de dois diretores que, a seu jeito, souberam burlar o sistema de produção que estavam inseridos em busca de um cinema que escapasse de formas e fórmulas, tendo controle autoral dos filmes sem, necessariamente, deixarem de fazer filmes comerciais e de estúdio. Larry Cohen e Jean Garrett foram, cada um a seu modo, cineastas sabotadores.

Foi Deus Quem Mandou, de Larry Cohen

Cohen, estadunidense, tem uma carreira endereçada ao cinema de gênero que já se inicia curiosa: sendo branco, dirige alguns bons blaxploitaition no início da década de 70 até que abraça de vez o cinema de horror em Nasce Um Monstro (It’s Alive, 1974), marco do cinema de gênero em plena Nova Hollywood. O que chama mais atenção aqui é a capacidade de extrair o melhor das condições que se tinha em mãos, frequentemente apresentando soluções que burlassem os apertadíssimos orçamentos para fazer filmes que sim, tinham o elemento da diversão — a violência e a nudez não deixam de marcar presença — da época, mas que se propunham sempre a ser mais. E aqui, entra o aspecto mais fascinante de sua obra, a completa fé na dramaturgia até mesmo quando a suspensão da descrença falhava.

Nasce Um Monstro, de Larry Cohen

Pensemos um filme como Q — A Serpente Alada ( Q — The Winged Serpent, 1982), por exemplo. Anos 80, após Alien e Star Wars apresentarem criaturas construídas com esmero tecnológico, Cohen nos entrega uma serpente gigante que tem asas e voa por Nova York. É um estranho conto urbano, de uma criatura mítica voando à luz do dia, existente graças a um chroma-key tosco e animação stop-motion que poderia representar um Ray Harryhausen em seus piores dias. É um filme de monstro que se passa à luz do dia cuja criatura quando mal mostrada é claramente fake, rapidamente datado. Não tem como sentir medo daquilo e o filme sabe, e não se propõe a ser assustador em nenhum momento. No entanto, o monstro é assustador pros personagens, e isso é o que mais admiro em Cohen. Pra quem ri da precariedade dos filmes, aquilo é trash, mas pros personagens de Cohen, aquele “dragão de massinha” é muito real, e acaba por ser um filme sobre um monstro que fanáticos dão a vida pra invocar por acreditarem ser um deus. Em determinado momento um personagem fala que isso não é novidade, que muitos já fizeram o mesmo durante a História. É um filme que ignora a precariedade de seus efeitos visuais para desenvolver como trunfo sua própria dramaturgia, entregando personagens bem construídos e um conflito satisfatoriamente trabalhado. Essa capacidade de assumir o tosco, o brega, o cafona, e contrabandear um cinema que apresenta sustância em forma e discurso e independe de efeitos visuais e avanços tecnológicos — antes, trabalha contra eles — , é louvável.

Q — A Serpente Alada, de Larry Cohen

Cohen é um exemplo de cinema de gênero feito à margem da indústria mas que ganha sobrevida mesmo quando torna-se datado pela sofisticação com que lidava com a linguagem e a narrativa. Aconteceu o mesmo com Jean Garrett, português radicado brasileiro que produziu muitos filmes durante a fase da Boca do Lixo do cinema paulista. Se para o senso comum as pornochanchadas são filmes de comédia regados a sexo (ou filmes de sexo regados a comédia), basta observar nomes como Garrett para dar de cara com uma filmografia mais interessada em reproduzir um cinema de gênero que se encaixasse dentro do modelo de produção vigente. Segundo Ruy Gardnier, “o cinema de Jean Garrett é bastante avesso ao rótulo de pornochanchada. Dele, todavia, o diretor não consegue se dissociar por dois motivos primordiais, um derivado do outro. O primeiro é o da proveniência. Fotógrafo de profissão, tendo trabalhado com moda, institucionais e fotonovelas, Garrett começou no cinema por intermédio de José Mojica Marins e o percurso seguinte era inevitável: Boca do Lixo. Logicamente, isso significa uma determinada faixa de mercado e uma marca estilística: os filmes devem explorar a sensualidade e exibir corpos de mulheres com roupas mínimas, seja a intriga qual for”. É como um agente duplo, que topa fazer filmes de sexo mas os aproveita para exercer sua vocação, um cinema muito arraigado a um imaginário de terror, horror, policial, evidentemente produto de uma prática cinéfila.

A Mulher Que Inventou o Amor, de Jean Garrett

Aqui, tomemos como exemplo um filme que figura dentre os melhores filmes de gênero já produzidos no Brasil: Excitação (1977). Síntese do que seria esse cinema sabotador, Excitação é um ótimo exemplo de filme permeado pelo zeitgeist, moralmente bastante errado (estamos numa pornochanchada, onde o machismo é sinônimo), e extremamente fascinante do ponto de vista estético. É um rigor formalista que não se encontra até mesmo em produções atuais feitas com mais recursos. A câmera, cuja fotografia é do Carlão Reichenbach, enquadra a ação com uma precisão admirável, numa série de enquadramentos que remetem não apenas a temas que perpassam o filme, como a um chamado bom gosto cinematográfico que é resultado de um requinte visual, de um olhar treinado, de uma busca por uma plasticidade que naquele momento poderia ser considerada incomum no cinema brasileiro. É um desbunde de tudo o que viria a ser considerado brega a posteriori: zooms, fusões, uma câmera na mão bem feita, uns efeitos visuais toscos, uma música incidental que acompanha a ação.

Tanto Cohen quanto Garret faziam um cinema muito artesanal, de baixo custo, mas relevante em termos de linguagem. Os filmes do Cohen são mais políticos, embora não fujam do olhar equivocado sobre o corpo feminino. Os do Garrett prezam por uma beleza plástica que realmente se destaca dos filmes da pornochanchada paulista. São filmes exploitaition ao seu modo, mas muito desejosos de trazer valor a algo que é claramente B, comercial, feito por estúdios pra vender. É vontade de criar, de autoria, em meio à precariedade predatória do capital. Se você tiver que assistir um filme do Cohen, veja Foi Deus Quem Mandou (God Tol Me To, 1976). Se tiver que ver um do Garrett, corra para ver Excitação. A partir daí, passeie e se delicie por suas subversivas filmografias.

Excitação, de Jean Garrett

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